Hospital Casaredo 30
Nise da Silveira, tela de Portinari
Madame, Manoel e as líricas
Ó Pedra preta, conta-me do teu amor.
Ela lhe cantava ceifeira linda ceifeira[1], seguiu a escrever Madame. A raposa das nove caudas e o lince ibérico se encontraram, próximos ao carvalho-alvarinho. Nada disseram um ao outro. Havia dor, algo vingativo no ar. Assim como se encontraram, apartaram.
Se havia algo com que não se podia brincar era com a ideia de fugir para outro lugar, Madame o sabia, de alguma forma. Em estando ao roseiral, querer estar na praia. Na arrebentação, querer estar na Sor. Na estradinha, ir a Lisboa. Da Alfama, aos castanheiros. Dos castanheiros aos sobreiros. Dos sobreiros às ondas do mar de Andamão. Ir a lugar algum também era uma possibilidade. Para quem já andara tanto, o Casaredo era um bom lugar. Como explicar as estuações de uma velha? A mão de Madame tremia ao segurar o rodo que fora deixado na entrada do refeitório. Ela já escrevera em uma de suas páginas se este rodinho voasse. O encontro entre a raposa e o lince ibérico fora desleal. E Madame nada poderia fazer. No bolso de sua camisola, acariciou um retratinho, uma pintura de Portinari que o enfermeiro Manoel lhe dera.
Mesmo ao expressar seu desejo de ir à cozinha, as reações de Madame andavam letárgicas. Até cochilou, abandonou-se ao rodar da cadeira, foi de encontro a uma parede. Gaspare, ao descobrir Madame em posição instável, inclinada para o lado esquerdo, com sua gentileza habitual soltou a mão da paciente do rodo. Postou-lhe a cadeira diante de uma janela do corredor, voltada para o jardim. Lamentou não haver para o almoço um novo prato de bacalhau. Os mergulhos enevoados de Madame mexiam com os nervos de todos. Podiam durar semanas. Quem sabe se lhe apeteceria vir para o mundo real em algum instante. Passada meia hora, Javier levou-a para ver o mar. Havia mais alguém com eles, só Madame viu. O enfermeiro, sentado ao lado da senhora na areia, acompanhava o movimento do lápis no ar. Apenas seguir-lhe o bailado dava sentido a alguma coisa. Javier suspirou. A mão de Madame vacilava mais nos últimos tempos. Os exames neurológicos afastaram traços de Parkinson. Esse ir e vir do mundo, obnubilado ao cotidiano, causava imensa nostalgia ao espanhol. Para afastar o medo, Javier cantou uma cantiga de escárnio sobre a velhice quand’em Toledo fiquei desta vez; e veo-me Orraca López rogar e disso-m’assi: - por Deus que voz fez, non trobedes a nulha velh’aqui cá cuidarám que trobades a mim[2].
Madame, por um momento, olhou para Javier. Disse moço bonito. O gesto elegante de tocar-lhe o braço parou a meio. Talvez tivesse chegado a hora. O enfermeiro a tomou nos braços e correu com o leve fado. Afastou a compostura, o treinamento e se deixou chorar enquanto corria. Já no ambulatório, o doutor Itaú deu os primeiros socorros, à paciente e também ao enfermeiro. Fora emoção mais forte, algo que Madame pressentira. Ou vira. Um tônico para os nervos, umas horas de sono e a senhora se estabilizaria. Onde ela estava no momento? Como saber? Javier é que precisava ficar atento, vigilante e forte. O doutor compreendia bem a dor, sabia deixa-la purgar. Segurou o ombro do rapaz e aquele toque serviu como uma sessão de luzes. Recomendou uma pequena dose de pisco e Javier tomou sem hesitar. Itaú estendeu para o enfermeiro uma pedra preta, que se moldava bem entre as sobrancelhas. Quando tivesse outro intervalo, que deitasse sob uma árvore, esfregasse bem e posicionasse a pedra. O gesto auxiliaria a condução de energia ao córtex. Então, Javier entenderia. Um touro de três olhos.
Itaú, afro brasileiro, na casa dos quarenta anos, chegara a Portugal há quatro meses. Clinico geral, especializou-se em psiquiatria, por conta da debilidade da mãe. Esta jazia no sanatório em São Paulo. O médico viera estudar um pouco mais sobre ancianidade. Fora encaminhado ao doutor Wong Lam. Pretendia, após as primeiras impressões sobre o Casaredo, sobre a equipe, transferir a mãe para perto de si. Itaú entendia o envelhecimento como transformação. Não em húmus, como era corrente. Via, na passagem das horas, preparo sutil para futuros cometimentos, adiante no tempo, no espaço, não pertencentes ao meio material em que se encontravam. Aguardava tranquilo o ingresso na equipe, o abraço de Portugal. Aguardava a oportunidade de oferecer à mãe o conforto que ela merecia. Olhou Madame e sorriu, ela e ele estavam no lugar de que precisavam. Enquanto Javier se recuperava da comoção, Madame despertou, ainda deitada na maca. Foi levada ao dormitório pelo doutor, que a dispôs no leito com cuidado e respeito. Itaú estava ao lado dela quando Madame disse a mãe precisa de ti, meu filho. Precisa, também, ter cuidado com Adele.
Como era usual, Madame desceu da cama, horas depois. Já ia escorrendo ao chão quando deu com a cadeira de banho, a comadre embutida. Dispuseram, para ela, um modelo de cadeira sem aros condutores nos pneus, então não era possível mover-se sem ajuda. Resignada, a senhora urinou naquele estranho artefato, acompanhada dos gritinhos da senhora Três. O grasnado da companheira de quarto lembrava uma araponga cansada. Manoel veio socorrer uma e descobriu a outra em desconforto. Depois de atender a araponga, conduziu Madame ao banheiro, não sem antes ela se certificar de que seu caderno e lápis estavam consigo. Ainda olhou para a colega dos gritinhos. Quietude conquistada a um giro do pacote de soro. Um comportamento alarmante o da senhora Três, o de lamber os polegares feridos, com maior profusão o esquerdo. Ela os chupava sem cessar, trocando as mãos quando uma sangrava. Madame voltou o rosto para o enfermeiro, como a lembrar-se de algo querido. Manoel nunca lera as anotações de Madame. Para ele, o caderno era como acarinhar o polegar. Foi tocado por aquele olhar entretanto, que possuía certo magnetismo. O enfermeiro, após proporcionar-lhe higiene, esperou que Madame escolhesse onde desejava ir. Ela optou pela parreira. Ao chegar ao recanto, a senhora olhou com vagar para todas as direções, para a mesinha onde escrevia, fez que ia cochilar, tomou fôlego, decidiu-se e o lápis anotou recuperar-se, após os temporais e as sentenças. É imperioso refazer-se. Manoel ficou ao seu lado, acompanhou o que a página ia dizendo, surpreendeu-se.
Jose Gaetano permitiu-se uma consulta, em viagem, com um físico de almas. Foi diagnosticado como uma das milhões de pessoas que não se apaixonam por outras. Limitação das forças de atração e repulsão, o médico explicou, algo errado com os hormônios. Como se amar fosse reflexo congelado, relegado ao pensamento discursivo. O médico esclareceu, como pode, que o comandante era imaturo para relações humanas, em todos os âmbitos. Se aceitasse tratamento, poderia fortalecer a musculatura dos lábios, iniciando assim o processo de libertação do mundo imaginário em que vivia. José deitou-se resignado, para praticar uma bateria de exercícios, a serem executados com regularidade e disciplina. Precisaria reaprender a sugar, a respirar, a cerrar os dentes, a socar, chutar e a dizer não, além de fazer foco e mudar a direção do olhar. José foi obediente, embora cético. No final da primeira sessão o doutor, a mexer o cadinho em um copo de Becker, propôs-lhe beber o láudano oferecido, paliativo para o humor, para regular o sono e o apetite, também o coração hirto. Mais tarde, de volta à rebeldia silenciosa, o comandante, não sem desprezo, desejou que o alquimista inventasse um gás hilariante e domasse as ondas que ele domava, quase todos os dias, em alto mar. Quis transformar-se em huli jing, porém abominava maldades. Alguma incongruência o alarmava, mas quem ele era para refutar diagnósticos. No íntimo, declarou guerra ao físico. Sentiu-se estimulado, talvez pelo medicamento que ingeriu, achou tudo risível. Possuía o alto mar dentro de si, dos bravios, isso ele podia identificar. Os mecanismos de defesa, toscos, levantavam-se em tsunami. Um mar que julgava seu, domínio absoluto, sal de sua consciência, estado de alerta. O comandante não entendia que raiva daquela espécie era força destrutiva, contra si. Para um sujeito adentrar sua intimidade precisaria de chave, foi o que José rangeu entre dentes, as arcadas não coaptavam bem. O físico, competente, pacientemente seguiu seu caminho, após cotejar os prognósticos sombrios. Experiente, o médico de almas conhecia aquele tipo de caráter, sabia que poucas mudanças positivas se verificariam. Cantar era o dom que equilibrava José, o físico suspirou. Que cantasse mais. Evitaria, quem sabe, comportamentos deveras aviltantes. O marujo ainda meditou muito sobre a explicação que o doutor lhe dera: a ideia de querer enganchar-se, encostar-se em alguém, como certos crustáceos, que ocupam e arrastam até garrafas sobre si, à maneira de casa. Jamais se vira como vampiro de alguém. Novamente, a maldição da mãe o assombrava.
Desconcertado com a consulta ao físico, que tomou à traição, José Gaetano tratou de investigar cautelosamente a literatura disponível, sobre este assunto de vampirizar outras gentes. Pensadores de lugares diversificados contavam histórias a respeito, cada um com um tipo de abordagem ou acolhimento para seu laudo terrível. A soberba destroçada o consumia. O marujo sonhou ser um desses pensadores. Quem sabe encontraria um, consolador. Um amor entre eles. Entrou em surto. Deixa-me entrar, pensava. Ou seria deixa-me sair? Tantas vezes José Gaetano redigiu o verso, pisou sobre águas estagnadas, a ponto de trincar um dente. Contraditoriamente, o físico de almas ocupou, por tempo indefinido, um espaço terno no coração pedroso de José Gaetano. Ainda renitente, o maroto grumete deitou o vidro de láudano a um riachinho, enquanto aguardava um carregamento de cereais para as Canárias. Não queria sentir falsa euforia, que resultava sudorese, mente em frangalhos, prurido no couro cabeludo. As batalhas íntimas, atrapalhadas, ainda se repetiriam durante toda viagem, por tempos longínquos. Era como théâtre d'horreur. Médico e monstro romperam vínculo dentro de José, a jornada parecia dividida, monstro na jaula, médico no vício. Havia compromissos com almotaçaria a zelar, os víveres primeiro, o coração em último plano. O vazio existencial que José sentia virava notas de canção. Para um cheque mate, faltavam dois lances. O eu mais atormentado se posicionou. José Gaetano não era mau. Bom, estava longe de ser.
Outra carta chegou. O Donis em pessoa a entregou, acompanhada de uma turmalina. O intento vergastou o coração de José, mar revolto. Esperava uma declaração e era o Triângulo das Bermudas, inútil o desgaste emocional, nascido de um gesto fraterno. Mareado, o comandante sentiu falta da medicação. O texto era grandiloquente. ‘Eu sou brasa! Sou braseiro... Sou brasileiro. Sou chama flamejante. Sou português, sou mouro, sou estrangeiro. Fogo! Fogueira que sugere uma reunião, uma roda, um encontro, um rito. Sou Tupy Guarany, sou africano, sou brasileiro. Agrego gentes de todos os cantos. Acumulo vidas de todos os santos. Sou brasileiro. Sou o valente português que descobriu o paraíso. Sou o índio que se encantou com os deuses brancos. Sou o voraz colonizador que se transbordou em luxúria. Sou índio injustiçado. Sou o português que arrancou o ouro, o pau brasil e as penas dos índios. Que estuprou, que corrompeu, que enganou, que chafurdou em terras tropicais. E espalhou doença, desrespeito e ganância. Sou o índio injustiçado, atropelado, ludibriado. Sou o preto acorrentado, separado de minha terra, de meus filhos e do meu continente. Sou brasileiro. Sou a mãe que ficou em Portugal enchendo o mar de lágrimas ao ver partirem seus homens em caravelas e mais caravelas por anos a fio. Sou o jovem rapaz que atravessou o oceano em busca de esperança em terras americanas. Sou o índio que trocaria tudo pelo brilho de um espelho, curioso, embasbacado com as naves flutuantes dos deuses estrangeiros. Sou o português apaixonado pela pele, pelos peitos e penas das índias. Sou brasileiro. UM CALDEIRÃO, A BRASA ACENDE, O BRASIDO AQUECE. O Senhor de engenho, a família real portuguesa, o capataz. O filho da negra, da índia e da sinhazinha. Brasileiro, judeu, latino, branco, negro, mulato, caipora, mameluco, caboclo, moreno, cafuzo, estrangeiro, forasteiro, brasileiro. As armas portuguesas. O negro açoitado, o negro com medo, o negro guerreiro. Zumbi dos palmares, a resistência, Antônio Conselheiro. A ama de leite acalentando em meu peito negro o filho do coronel, enquanto assisto. Ao meu filho pelo coronel ser açoitado, o navio negreiro naufragado, o pau-brasil, as palmeiras, os pinheiros, ouro. O rio São Francisco. A floresta amazônica, arara-azul, onça pintada. Mico leão dourado. Jesuíta. O padre, pastor, pai de santo, o Rabi. Sou o samba. Sou Italiano, japonês, ucraniano. Mata atlântica, serrado, caatinga. Sem terra. Latifúndio. Coronel, capitão do mato. Sou Araguaia, trabalhador, sou dona de casa. Pantanal, Iguaçu, sou os pampas’. A.D.
José Gaetano leu, baixou os olhos, tomou fôlego. Esfregou a turmalina. Deu-se conta da gravidade de seus vícios afetivos. Não tinha mais como sustentar aquela revista musical que era sua vida. Sem ter com quem dividir tamanha angústia, implodiria. Contrapôs a sensação a uma cantiga que não encaixava, não entrava em sintonia com o sintoma. Se a noite não tem fundo, o mar perde o valor. Opaco é o fim do mim p’ra qualquer navegador (...).[3] A canção soou de outro tempo, circunstância e destino. Era a confirmação do diagnóstico. Eram alucinações, ideações persecutórias. Invenção remota e, por isso, ainda mais dolorosa. Para quem olhasse de fora, via um cantor emocionado. Conforme José desfiava os versos, mais deslocado e ausente se sentia. Era como mover lodo no fundo do regato claro, ao invés de tomar água da superfície, as mãos em concha. O canto, brisa noturna, secava-lhe o suor da fronte. O colega de palco falava de si na carta, apenas de si. Quanto José desejou arrimo para a dor. O que faria? O que seria d’ele? Opaco é o fim do mundo (...) que perde o oriente. O que José Gaetano esperava, afinal?
Ai Deus, e tu me guia! Que visse’hoj’eu por meu bem a que ver queria: o que parece melhor que quantos Nostro Senhor Deus fez (...) José Gaetano subtraiu o nome à heroína, para pensar seu capitão-mor. A pausa criou bom efeito interpretativo. Seguiu a cantar por que moir’eu pelo seu parecer que lhi Deus deu a este Don loução? Eu nõn’o vi mais oí dele muito bem A Lobatom quer’eu ir cá, u and’eu sejo sempre no meu coraçõm muito ver desejo a senhor do melhor prez de quantos Deus nunca fez: este (...)[4]
A partir do episódio da turmalina, rarearam os encontros entre José e o capitão-mor. Poderiam ter-se materializado, tais encontros, dos cadernos da alucinação. Poderia, o delírio, ter corrido na planície, na Serra de Larouco, nadado nu, subido em olival, comido laranja com borda de sal. Um roçar de lábios, nem isso ou quase, na frente de uma Nossa Senhora toda branca. Uma família, o casarão diante do mar, os milhões de euros, os filhos. José Gaetano não sonhou com a mulher que ele abandonara, grávida. No dia em que o comandante plantou a Julieta no bosque, Rosália andava perdida por Faro. Ela era o brilho da pedra preta. E o Donis, o Donis virou história.
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