Hospital Casaredo 29
Várias histórias
Jovem da passagem, dou-te o anel da pedra verde. Ah, não queres? Que posso eu fazer?
José Gaetano, o corsário da Sor, escreveu em dia de temporal, depois de muito puxar cordame. Quis impressionar o deus da lira ao cantar o quieto em mim perdeu-se entre os pinus lenhosos do olival, não para danar-se em barulho de estrada, mas para achar-se no voo lento do pássaro sem nome. O quieto em mim ouviu histórias que quis durante as andanças pelos campos de cevada, nas manhãs louçãs, nas terras do Minho. Sentiu, talvez, aromas que não quis. Porções pequenas, de comer com colher. Atavismos, da jornada toda a cismar um Portugal inalcançável, terra amada como poucas. A saudade, uma ponta de estrela, fez-se pensamento afetuoso, talvez embasbacado. A cerda áspera da bucha de lavar roupa, usada em ferimentos superficiais, deu-lhe certo encanto, esfregada a esmo sobre a cicatriz do ombro. Tu pousaste a mão em meu cabelo maltratado. O espanto ainda é tanto, nobre amigo. A solidão, tarefa de sorver neste paraíso, o quieto em mim aceitou. Orfeu, a voejar ao lado de José, opinou que o texto era pretensioso, mas valeria guarda-lo.
Eram três da tarde quando a dama embarcou à charrete, e dessa forma começamos a historieta pelo seu final. José Gaetano intuiu a marca a ferro a lhe correr pelas vértebras, fechou os olhos e entregou-se a passado corrompido. Difícil consentir, se é que um dia se perdoou, meter-se com tal romance pedra verde. Um coração aniquilado, foi o preço a pagar pela viagem. Na ocasião em que tocou a jovem pela primeira vez, um episódio dos confusos, era o tempo de seus dezenove anos. O grumete seguia do Minho a Lisboa. Iria mercar à rota do Mar de Omã, sob a chefia do famoso pirata Mineápolis. Para ganhar o Terminal Cruzeiros de Lisboa sem tardança, foi preciso dividir a charrete com a filha de um estalajadeiro de Cascais. Alguns quilômetros de sacolejo e a moça praticamente desconchavou em seu colo, aninhando-se para dormir. José a conhecia de passar, nem lhe sabia o nome. Nasceu, daquele gesto gratuito, sob uma lua fulgurante, céu negro de inverno, intenção qualquer uma, a obstinação mais disparatada do rapaz, que sentiu como se tivesse para onde voltar. Alguém fazia as honras de deitar-se-lhe ao colo. Queres razão mais estupenda, leitor, para cair de amores, dores e todo este arsenal que anima as novelas?
O que sonhava a jovem, o marujo até hoje não sabe. O que quereria com ele? Amou-o, disse o físico que o ajudou a recuperar-se do golpe, após o fim do idílio funesto. Se dentro daquele corpo habitava um monstro perverso, era projeção imaginativa de José Gaetano, ou ele topara mesmo com alguém torpe, dava no mesmo. Ainda não tivera como liberar-se do desvio que lhe cabia. A juventude tem dessas matracas para com alguns, inventa linda guitarra para que se deslinde o pão bolorento, tudo a favor do dono da barganha. Já se falou em cultura, em aprendizado para a vida, fruto de uma salada de bacalhau com pouco tempero, não perguntem o que significa tal figura de linguagem. A outra pessoa está isenta de responsabilidades, se isto for de possível compreensão para o leitor. A outra pessoa somente acompanha, sofre as bastonadas junto e vai embora um dia, caída aos braços de outro marujo melhor. Houve tempo para envergonhar-se, para instalar cercas elétricas de alta voltagem à consciência. Só que dela, consciência, não se escapa. Casamento? José Gaetano lembrou-se, sim, oferecera o segundo anel. Chegara ao trigésimo ano de sua amarga vinha. Era de ouro o anel, uma singela água marinha esverdeada, espetada em ele. Não fez o pedido com joelho dobrado, mas com um poema escrito, gesto infantil e enfadonho, para uma mulher apaixonada por outro. Feitos os cálculos, José e esta filha de estalajadeiro passaram onze anos juntos, sob mesmo teto, a trocar lençóis. Um homem coerente diria fria cilada, outro diria é a vida. O embarcadiço acreditou piamente ter encontrado a alma gêmea, o único amor da jornada, mesmo sem jurar até que a morte separe. Tempos de tragicomédia.
A filha do estalajadeiro de Cascais estaria, para sempre, nos pesadelos de José. Permaneceram sequelas severas do enlace, José a investir em novelas que não poderia protagonizar, nem feito figurante. Apanhou muito, até o final de seus dias por conta disso. Vangloriar-se? Qual filho de fortuna? Qual habitante do paraíso? Que transtorno patético, fruto de vício?
Quando José Gaetano olha a lua, como a desta noite de Sor, depois do temporal, contrafeito ele se lembra de ter sido jovem, de feitiço e feiticeiro. Desvia os olhos do luar, da dama que lhe assombra a memória, com medo de rogar encontro agourento igual. Para encurtar o registo, a dama de Cascais fez o sal marinho perguntar, se José era homem ou barata. O dito anel da pedra verde, hoje perdido pelos baús, lá no porão, pertencera à bisavó malaguenha de José, por parte de mãe. A joia, simples e cândida, tinha bem mais de cem anos. Ficou, para o comandante da Sor, o barco com a Julieta recolhida, âncora que hoje repousa em um bosque a beira mar.
O tempo precisava gerar presença. Diante da lua supernova, faminto, cansado, José guardou a sete chaves seus pensamentos, pilhérias da vida. Abriu a história de Isaac Newton e esta pareceu-lhe genial, consoladora. O preâmbulo contava a Cíntia lunar vinha repousar no colo da Terra. Era crepúsculo. José pausou a leitura, pediu perdão a Orfeu, por ter-lhe amofinado com carências, agradeceu ao astro tão complacente dádiva. Cuidado com o que desejas, o deus mangou.
Podem esquecer, leitores que chegaram até este ponto da narrativa, não haverá mais única palavra sobre o tal libreto da pedra verde. Só se quereria falar, neste instante de lembrança, da força do orbe lunar sobre um homem de dezenoves muitos anos em meio do mar, no cais, a sacolejar sobre a pedra das Vias Apias. Para se despedir do deus solícito, José ainda cantou um bando de palavras celeradas sisudas cismadas, acompanhadas pelo santur. Palavras com febre, com asma, luxadas, com frio. Voz dos anelos de pedrarias, dedilhada a tolices. Um móbile, uma jornada atenta, carinhos do vento. Tanta vida vivida para nada, o claustro, o caramanchão. Eu, José, estou um trapalhão. Umbralinos se acotovelam, ânsia de luz. Beira-baixa, Tuizelo, há tempos dormem em mim. Resta, ainda, a oportunidade do encontro. Ó Alois, ó querubim dos homens sem raiz. Vem.
Bacalhau com batatas e bordado, ah, como queria eu compor um fado
Depois da higiene matinal, Gaspare ia saindo com Madame para o jardim, amarelo de tanta rosa, quando ela apontou a cozinha. Gesto novidadeiro, o rapaz animou-se, a senhora não se alimentava a contento há dias. O refeitório era amplo, asseado, domínio que Catarina dividia com Josefine. A limpeza do café da manhã estava concluída, a equipe do almoço fazia tarefas em outros setores, o local estava vazio.
Gaspare já ia dispondo a cadeira diante de uma das vinte mesas para seis, dispostas em corredores, quando Madame retirou o caderno do bolso e apontou a porta da cozinha. Os dois pararam encantados, era o balcão de corte e preparo dos alimentos. O caderno estava aberto em uma página onde se lia uma receita de bacalhau. Os armários, os gelados, congelados. Gaspare não viu inconveniente em ir abrindo as portas, a mostrar seus conteúdos. Logo, estavam perfilados sobre a bancada lombos de bacalhau, sal, alecrim, batatas, pimentões, cebolas, cabeças de alho, azeitonas portuguesas, ovos, uma botija de azeite que a senhora cheirou com gosto. Para estupefação de Gaspare, a senhora ensaboou e lavou as mãos, pediu com os olhos um avental e touca, que ficavam pendurados em um gancho ao lado da pia. O enfermeiro fez as amarrações e aproximou a senhora do espaço onde a cadeira de rodas melhor se encaixava. Alguma dificuldade para manuseio dos utensílios houve. Foi utilizada tábua de corte, uma faca dessas com serrinha e sem ponta. Madame se certificou de que as postas eram dessalgadas, descascou batatas com vagar, as mãos um pouco trêmulas, limpou os pimentões, verdes de um lado, vermelhos do outro. Lacrimejou um pouco ao talhar as cebolas. Voltou-se para a pia e lavou outra vez as mãos. Enxugou-as no avental. Tinha um pano de secar ao ombro, que usava para alinhar a bancada, outro sobre o colo, para secar utencílios. Descascou os alhos e os deixou inteiros. Colocou os ovos em uma panela e sugeriu com o olhar que Gaspare a enchesse e pusesse no fogo. Como não havia outro jeito, a senhora escreveu ferva duas panelas d’água, por favor. Em uma, o enfermeiro colocou as batatas, caprichosamente cortadas em rodelas largas. Bonito o balé lento com que a senhora se orientava na atividade, algo digno de documentação. Madame acrescentou uma medida rasa de sal às águas. Após desligar sozinha uma das panelas ferventes, sob a supervisão de Gaspare, mergulhou as postas e tampou por dez minutos, marcados no grande relógio de parede. Em uma frigideira funda, dourou as batatas em azeite, com um cuidado que fez o enfermeiro se emocionar. Em outra, refogou as cebolas, alhos, pimentões, azeitonas. Livrou as postas das espinhas e pele, tudo com um manejo de profissional. Foi arrumando os ingredientes em seis travessas. Corrigiu o sal. Uma lady, na prova de cada bocadinho. Sobre cada travessa, a senhora compôs um belo peixinho com os ovos cortados ao meio. Regou com mais um pouco de azeite. Gaspare dispôs os pratos no forno. O enfermeiro e a paciente limparam a bancada, juntaram o lixo, lavaram a louça, enxugaram, guardaram. Foi o tempo do prato ficar pronto. Quando Catarina entrou no refeitório para seu turno, encontrou os dois a sorrir, quietos diante do caderno em que Madame anotava seu feito. O dia estava propício para uma bacalhoada. A cena se repetiu algumas vezes em outros dias, cada vez uma receita nova de bacalhau. Todas as refeições, compartilhadas com a equipe, foram regadas a vinho verde.
Madame, que quase não comia, preferiu, nesse primeiro encontro de refeitório, um pouco da sopa de bacalhau e couve, igualmente saborosa, feita por Catarina a partir de outra receita anotada pela senhora. Gaspare aprendeu muito naqueles dias. Recolhido ao dormitório, afoito por conter danos, puxou do armário de cabeceira um livro sobre laborterapia. Antes, para apaziguar sua disposição, leu Montaigne. Meditou sobre uma frase do escritor, fica estabelecida a possibilidade de sonhar coisas impossíveis e de caminhar livremente em direção aos sonhos.
Sonhos de saúde
Às quintas-feiras, vinham ao Casaredo estudantes de medicina, terapeutas de várias áreas, como já comentamos. Queriam conhecer o ambiente, inteirar-se das ações desenvolvidas pela equipe do doutor Wong Lam, que agora contava com as parcerias de Itaú, psiquiatra do Brasil e Dung Hanh, laborterapeuta do Vietnã. Era manhã solar de verão e o grupo visitante, composto por dez arteterapeutas, especializados em mandalas de cura, borboleteava pelos corredores. Sem supervisão, os jovens pareciam revolucionários no vestir. Caftans bordados a mão, uma infinidade de mandalas interligadas, mistura de fios, pedrarias, cores e tecidos. Em cada trecho da veste uma história, um pensamento, um sentimento, uma digressão. Era dessa forma que os estudantes meditavam e religavam seu íntimo, a bordar. Muito atentos, leves, silenciosos, os estudantes foram conduzidos na ronda por Dung Hanh, que logo se identificou com eles. A doutora havia trazido consigo, dos trabalhos anteriores, a prática da manufatura com fios e pedrarias, da qual não se separava, a não ser quando fazia os atendimentos. Seu bastidor ficava na sala que lhe fora destinada; nas paredes, várias estampas de pássaros do seu país, belamente bordadas por ela. Joana e Antária praticavam com a doutora, em bastidores menores. Amparo se preparava para bordar um lenço de ombros. A senhora Sete e o senhor Dez construíam tranças em tule, que resultaria em uma escultura com miçangas. Da visita florescente, muitas histórias seriam contadas.
O senhor Vinte faleceu no dia do borboletear dos arteterapeutas, dia em que, também ele, chegou ao Casaredo. Após a refeição da tarde, todos repousavam em seus dormitórios, os arteterapeutas meditavam no jardim amarelo, Dung Hanh bordava um grou. O desenlace foi rápido, após o homem segurar as mãos de Maria, que lhe cantava
No baile em que dançam todos
Alguém fica sem dançar.
Melhor é não ir ao baile
Do que estar lá sem lá estar. Fernando Pessoa
Com o último suspiro e um sorriso, o senhor Vinte partiu, certamente no momento de maior acolhimento em sua jornada, agradecido. Os arteterapeutas testemunharam todo processo até o sepultamento.
No mesmo dormitório, onde a morte levou o senhor Vinte, outro senhor desenhava, em uma pequena lousa de quarenta por quarenta centímetros. Seu leito ficava à direita do senhor Vinte. O que não ficou claro na ocasião é que o senhor Seis documentou a circunstância da morte antes de ela ocorrer. Ele assinava J.G. a um canto da lousa. Na estampa, figurava um vinhedo. Bem no centro da imagem a cama, o corpo, o rosto com a forma da lua crescente e Maria, a enfermeira, coberta com um manto de estrelas ao lado. J.G. registrou também a retirada do corpo, bem como o sepultamento, que ocorreria no dia seguinte. Esta cena registada, e seus detalhes, causou espanto aos arteterapeutas. A doutora Dung Hanh já se habituara a visitar este paciente amiúde. Falava com ele em sua língua natal. J.G. respondia, mostrando-lhe a lousa. De alguma maneira, os dois se entendiam. Dung Hanh obtivera do paciente permissão para fotografar os desenhos. Depois, revelava o material e o expunha, em sua sala. A sequencia do óbito chamou a atenção de um dos arteterapeutas em especial. O rapaz perguntou à doutora se poderia transformar aquela expressão em moldes para bordado. Outros desenhos do senhor J.G. foram expostos pela doutora, para inspirar ainda mais.
William Blackwood, de família tradicional inglesa, aficionado pela arte de bordar, encantado com a arte de acolher e cuidar, logo tornou-se voluntário do Casaredo, após testemunhar a expressividade do senhor J.G. Tocado pelas possibilidades que a saúde apresenta e pelo vigor daquela casa, de seus moradores, o rapaz não demorou a integrar a equipe, em definitivo.
Quem bordava, também lindamente, era Chang Chang. Contava histórias em lenços brancos, à maneira dos portugueses. Seus últimos trabalhos eram dedicados aos enfermeiros que conhecera ali, em seu novo lar. O casal Wong Chang, depois de muita dor, se encontrava em um bom momento. A luta em seu país de origem, o sofrimento pela dispersão da família, a perda das filhas, ameaças à fortuna, deram-lhes ainda mais solidez. Marido e mulher anteviam no Casaredo uma comunidade das cinco virtudes[1]. As novas atribuições e a reconciliação com o filho remoçaram o casal, devolveram-lhe serenidade. Tanto Wong Bohai quanto Chang Chang voejavam pelos corredores, jardins. Iam os dois, acompanhados de perto por uma paciente, Adele. A moça, não se podia negar, possuía muitos dons. Chang Chang exercitava com ela a benevolência. Wong Bohai tinha forte senso de justiça. Cientes das recaídas às quais estava exposta, o casal via em Adele um huli jing, espírito místico de raposa, em uma cela auto imposta. Os Wong Chang acreditavam na raposa de nove caudas. Davam a Adele campo e lugares para se ocultar de si, Chang Chang com um propósito, Wong Bohai outro. Observavam, atentos, disciplinados, trocavam impressões, ousavam previsões. Wong Lam participava deste arranjo dos dois, excelente cientista que era. Muitas histórias seriam contadas, contos de assombro, talvez crime, encantamento e transformação, de monstros a humanos, na arte do bem morrer.
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