Hospital Casaredo 28
Versos para chorar
Hoje eu acordei com medo
Mas não chorei, nem reclamei abrigo
Do escuro, eu via o infinito
Sem presente, passado ou futuro
Senti um abraço forte, já não era medo
Era uma coisa sua que ficou em mim.
Cazuza
Cantar. Quem poderia tecer algum comentário a respeito? Várias pessoas cantavam no hospital. Cada uma provocava sensações diferentes, movia, ofertava lenitivo, servia como paliativo, era libertação, beleza. Por quanto tempo Madame guardara silêncio deste dom? Sua voz era como a flor onze horas. Assim como sussurrou, fechou as pétalas logo. Demorou a abri-las novamente. O caderno seguia sendo-lhe voz. Água corrente, como o abrir de uma torneira, assim funcionava a composição de versos para José Gaetano. Eles vinham fáceis, enfrentavam também os vácuos de ar dos canos, alguma vaidade por serem o que não eram, saberem o que não sabiam e outras apreensões. Coração corsário, Madame era incansável quando escrevia, parava aqui e ali seus amuos cotidianos. Madame era José.
Por conta de uma seca, um desabamento, uma obra de prefeitura, um funeral, ele escrevia. José Gaetano deixava o verso desaguar, por impulso. Em geral, era escrito inspirado pelos rios. O da aldeia dele, Oitavén-Verdugo. Ou era a chuva que enche o rio ou a nuvem que deita a chuva que molha o rio. E ponto. Cantar era espontâneo, não tinha hora para soar. O marujo dedicou-se, sempre, ao ofício de escrevinhador, interstício entre navegar e tocar seu santur. O ato queria compensar seu comportamento social arredio. Sonhava uma publicação, ao menos de suas partituras. Até possuía uma tipografia portátil. Aguardava algo, ao invés de ir ao encontro de um livreiro. Um pajem de sua tripulação editara versos pueris. Veio, risonho, trazer-lhe um livrinho de presente. A inveja paralisou José, deixou rastos, profetizou arrastos. Ele retraiu-se, parou de confiar nos próprios textos por longo tempo. Entendia que escrever, para si ou para alguém, implicava amparar. Era feito o ato de soprar, era alforria, contradição para alguém que sonha livro impresso. As canções, por sorte, disciplinaram-lhe a produção de sextilhas, quadras, versos livres. José Gaetano tinha sempre um deles, para ofertar. Enviava como que um cartão, um aceno pelo ar. Às vezes, o marujo ousava líricas, formas poéticas clássicas, sonetos, odes, canções estróficas. Ao Alois Donis foram os haikai mais burilados, de capricho intelectual. José relegava, sem embargo, a situação de qualira que herdara, por conta deste costume.
Torcemos para que o leitor se lembre de Rosália e não a confunda com a mulher da pedra verde, que vem adiante. Em Rosália, José plantou um filho. Nos começos do encanto, na segunda tarde em que chegou à hospedaria, José pôs-se a recitar, santur aberto: Vou cantar à porta da tua casa, amor, a cor do céu no clarear de mais um dia. Réstias de noite dos teus sonhos, rendas de saudade e poesia. Vou cantar e inventariar de canto a tua janela, tua cozinha o corredor. Até que se transforme a madrugada e me devolvas das tristezas o calor. Fado, meu fado, me inspira, que eu canto quantas vezes for, fado, meu fado, me inspira, que eu canto por um novo amor. Vou cantar à beira da tua rede, amor e provocar-te até que tu chores baixinho. Até que a tarde enfim desista de querer-te e anuncie a nova noite rosmaninho. Vou cantar-te em todas as canções de encanto e preparar-te um desjejum de mel e flor. Ai, vou cantar-te, amor, (esta) canção de amigo, par’ que se cale o coração de murmurar. A recepcionista da Roseira escutou, achou bonito. Andava desgostosa, a Rosa, da falta de comprometimento dos homens. Poesia não poria cueiros nos pirralhos, assim ela intuíu. Em um ensaio para outro sarau, que ocorreu na hospedaria, o Donis comentou nunca me compuseram versos. Rosa escutou isso também. José, lisonjeado com a primazia, deu ao Alois um diário, repleto de cavalheirismos. Rosa testemunhou também este gesto, que José procurou compensar com gorjeios. Atrapalhado, como sempre, o aspirante a golfinho convenceu ainda menos a dama. Mesmo assim, cresceu um pé de filho no ventre da mulher.
José Gaetano tinha ternura pelas mulheres que conhecera. Compôs para elas versos ternos, nada tensos. Já os dirigidos a Alois, eram tafetá da alma. Árias à mulher que canta, escreveu-lhe uma vez. Animosidades com a mulher que canta. Tragédia, a mulher canta. Telúrica, a mulher canta. Estoica no seu cantar, eis a mulher. Enlutada no seu cantar, eis a mulher. Protesta e canta, mulher! Provê e canta, mulher! Canta mais! Recitativos ao homem que canta. Loas ao homem que canta. Tragédia, o homem canta. Hercúleo, o homem canta. Imperial no seu cantar, eis o homem. Enlevado no seu cantar, eis o homem. Dita e canta, homem! Delira e canta, homem! Canta mais! E quando cantam, mulher e homem, as serenatas despedidas pranteiam. Eis que o que ama refulge, Helicón. A fonte prospera. A cantata espera. As colheitas de perdão.
Ao andar pelas ruelas do cais em direção à Praça do Comércio, na semana em que aportou com um carregamento de pérolas, José Gaetano deparou-se com um funeral de pequenino. O caixão branco, já fechado, subia a ladeira, cercado pelos poucos familiares, a mãe arrastada praticamente, a soluçar. Tomado por incontrolável tristeza, José entoou a Ave Maria de Gounod, grave, recolhida. Subiu a ladeira, junto ao cortejo. Ficou com o grupo até o caixãozinho ser baixado à sepultura. Então rebelou-se e saiu em disparada do local, a grasnar, corvo dos monturos.
Estavas, linda Inês, posta em sossego, De teus anos colhendo doce fruito, Naquele engano da alma, ledo e cego, Que a fortuna não deixa durar muito, Nos saudosos campos do Mondego, De teus fermosos olhos nunca enxuito, Aos montes insinando e às ervinhas O nome que no peito escrito tinhas. Os Lusiadas, Canto III
Há semanas, a atividade pouca de Madame deixou os atendentes de sobreaviso. Ela cantou, no dia da Ave Maria, depois escreveu dois ou três parágrafos. Deitada em sua cama, emagrecera e andava prostrada. Gaspare, Maria e Manoel revezavam-se à sua cabeceira. Manoel até lhe emprestou os lábios, mas ela não correspondeu. Quem sabe se, finalmente, era chegado o momento das despedidas, até que a senhora aceitou a papa, o banho, o neno e o passeio ao roseiral. Chamou os enfermeiros pelo nome, saudou-os com seu aperto no punho. Fez suas abluções sem ajuda, aguardou pacientemente na cadeira até que a limpassem. Retomou, uma vez mais, a sua prática de escrita convulsionada. Fez algum quadro febril, mas nenhum igual aos de seu prontuário anterior. O Casaredo, pelo que se tornara, lhe restabeleceu alguns neurônios.
Às dez e quinze aconteceu. Madame, que estava no bosque com Gaspare, desviou o olhar das rosas para os lados do refeitório. Avistou, a uns cem metros, aquela mulher que subia as escadas da cozinha com uma maleta humilde, vestes acinzentadas. Antária, Antária, Antária, sussurrou. Ficou esclarecido, mais tarde, que a presença desta senhora no hospital era resultado da conversa que ela tivera com o doutor Wong Lam, meses antes, em Lisboa. Gaspare acompanhou o olhar de Madame e viu também. Matilde recebia dona Antária. A colega, de forma inédita, sorriu para a recém chegada e tocou-lhe o ombro, enquanto a fazia descer os degraus e entrar pela porta da frente. Madame fechou-se. Guardou leito por mais dez dias. Escreveu, vez ou outra, e fez mínimos movimentos. Aceitou as fraldas, enquanto durou o recolhimento.
Às vezes, José Gaetano mirava o próprio rosto em um caco de espelho, Madame foi contando. Daquele objeto imperfeito, manchado de mar, era possível ver a proeminência laríngea, ou parte do braço, o joelho. Nem ao roçar o corpo com as mãos no banho, o corsário podia representar harmoniosamente o todo que o compunha. Procurava, vez por outra, unificar-se no desenho. Alquebrado, assim se sentia nos últimos tempos, sem reconhece-se, compreender, aceitar. As esperanças sumiam, feito nuvens. Trinta e dois dias contava estar, em uma das muitas calmarias que já experimentara.
O mirar-se por partes, as de predileção, deixava o marujo inquieto. Um alquímico a bordo da Sor lhe dissera o teu espírito foi vestido pelo corpo somente até o umbigo. Abaixo disso, tens energia à mostra, a vazar pela base. Às vezes, a força fica ao teu lado, por demais desatenta. Aturdido com a descrição, mesmo assim José Gaetano aceitou a proposta, um bom passo para o entendimento da real situação em que se encontrava. Algo vagava fora dele e era ele, atado por um cordão, um fluido. Sem espaço, sem tempo, sem história. José estava o que tinha corpo e era metade de um ser, despido de envoltório. Difícil explicar tal compleição. Considerou seu campo estrutural. Parte do aparelho digestório, o aparelho reprodutor, pulsavam sem alma. Como compreender tal raciocínio? Para harmonizar seu centro criativo, parte de sua essência a esvoaçar, cantava. Alguém poderia ajudar em casos assim? Como estimular uma pessoa a pedir ajuda? Para quem? Pernas e pés sem espírito. Como perdoar? Como conviver consigo nessas condições? E a sua audácia em desafiar a vida, sem chão?
Talvez os filhos, os que José ousasse ter, viessem com seus espíritos totalmente vestidos, quem poderia prever? Pensou em se safar. Cristino. O flibusteiro nem o vira crescer no ventre da mãe. Abortara-o, perdera-lhe o espírito, expulsara-o à outra margem. José Gaetano pensava sobre o vazio com canções. Ainda não sentira arrependimento, remorso. A Rosa, aquela mãe tão terna, que assumisse a carga.
A palavra desalmado ficava como que pendurada por um fio de cabelo ao teto. José Gaetano não conseguia juntar as pontas, articular de forma racional seu lugar naquela narrativa. Tampouco acolhia àqueles que orbitavam, próximos a ele. Respeito, outra palavra estranha ao coração do corsário. Desde que se recordava, ouvia avante, anda, levanta, vai, coragem, seja valente, engula o choro, reaja, vai, anda, levanta, tenha vergonha, tenha dó, vai, anda. Ama. Amo, ele não lembrava se ouvira. Não registrara o sentimento doador. Tal gesto se configurava em um abraço. Abraço é um momento breve. Conceitos compridos demais para um homem do mar. José Gaetano não posaria de ingrato, tampouco apontaria o dedo, só não compusera amor. Não assumira, tampouco, a fama de covarde. Que lhe chamassem efeminado ou sirigaita, ele achava graça. Sentia uma lacuna, contudo, imunidade precária, perdera-a em alguma febre. Apalpava a fenda, ficava confuso, sofria. As pernas e os pés arruinavam a cada anoitecer, assim como seu senso de justiça.
Em um sábado certificado, se homem, barata, feminino, masculino, semi espiritualizado, José Gaetano teve súbito encontro com Poseidon. O deus empunhava seu tridente, os dentes à mostra, raivoso, a cabeleira esvoaçada, estático, visível apenas em topo de iceberg. Grunhia o deus, rugia, resmungava e agitava o tridente, emitia raios e vento. Poseidon, lamuriou o marujo, vivo a mendigar. O que, comida para teu pedaço de alma nua? Uma beberagem quente, para o conjunto da obra, sábio deus. E o que queres que eu faça, te dê calças? Uma bolsa? Uma taça? Ah, o Graal, é o que tu queres? Um jeito de eu compreender-me, poderoso deus. Ah, mas isso é lá com Zeus. Poseidon, apesar da rudeza, teve piedade daquele ser humano manquitolo. Não lhe deu nada, contudo, não gostava da versão mártir dos homens. O que fez foi chamar Orfeu. O sábio da lira sorriu, ao divisar o cantor choroso, aquele pobre enfarado cheio de lirismo, um tanto piegas. O que queres, ó Poseidon. Dá aí ao gajo babão algumas notas, que ele comporá melodias. Orfeu, cuja musicalidade era todo o mar, deu ao homem a água barrenta de um rio. José Gaetano achou que estava bom. Estás ainda a cogitar, perguntou Orfeu ao marujo. Se eu não aprendi a amar, o que é que me vai na alma, a vestida e a nua? Eu encontrei a alegria e ela não é minha, é o que intuo. Como é que eu explico isso, ó Orfeu?
Em alguns momentos, no silêncio do mirante, Rosália revirava sua vida. Infância aldeã de filha do meio, um pouco esmagada pela irmã, Deolinda, um pouco ensombrada pela outra, Antária. A mãe, seca como um milharal após a colheita, se ressentia do marido tê-la deixado com as meninas ainda pequenas, à cata de saias de chita no porto. O homem via as árvores a balançar com o vento e para ele eram raparigas, a dançar o vira. Três de quatro mulheres, em flor, às quais ele não deveria tocar, coabitando sob o mesmo teto, foi demais para o homem. Este pai fez menção a Deolinda, a que crescia em peitos e curvas. A moça gritou, recebeu bofetões e outros apalpões. Quando a mãe percebeu a tempestade que se armava, o esposo ausente da cama, tratou de tirar um facão debaixo da camisola, noite alta. Por pouco não castra o marido diante da filha cianótica e desnuda. E então o chefe da casa se foi, entre zombeteiro e apavorado. Era assim o mundo, essa doidaria sem limites. A mulher a pensar nas filhas, o que seria daquelas infantas de quinta pobre, sem dote. Foi quando o pai do marido estendeu a mão. Carecido de alguém que lhe preparasse o almoço na estalagem da Alfama, chamou a nora abandonada. Teve pena e também era um negócio aprazível. Logo havia quatro mulheres para tocar o estabelecimento e cuidar del’, tão limpas como se podia ser, naqueles tempos de terremoto.
Rosália foi-se habituando à lida de arrumar as camas, esfregar os lençóis. Era um trabalho quieto, reservado e lhe permitia, de quando em quando, fuçar nas bagagens dos pernoitadores. Jamais pegou nada. Gostava daquelas sacolas que levavam livros. A mocinha adquiriu uma técnica privilegiada, a de ler muito ligeiro e guardar o cerne das tramas. À noite, iluminada por um toco de vela, registrava a história lida em forma de conto, em duas ou três páginas. Um jeito ingênuo de captar encontros. As picâncias que lia, não tinha coragem de as narrar, vai que lhe surpreendessem os diários. Nem se lembrava de quando aprendera a ler. Algo que acorda num dia de chuva invernosa e não chama a atenção de ninguém. Este foi o melhor tratamento para sua alma, o de ler, para acalmar seu sonambulismo infantil. Os hóspedes, os que a flagraram em leituras, a brindaram com livros novos, em viagens posteriores.
A mãe tinha horror àquela trapalhada da filha, de andar a dormir. Passou algum tempo insone, a esperar que a menina aparecesse, às vezes nua, a assombrar a estalagem. Dava-lhe duas bastonadas das boas e a arrastava ao leito, com paradoxal deleite. Por sorte, nenhum hóspede denunciou. Esta mãe, muito supersticiosa e por isso temente, metia a moça de formas gráceis sob as cobertas, debaixo de maldições. O ir e vir das duas deflagrou a demência. Às vezes, Rosa recebia outros tabefes assim que surgia na cozinha, pela manhã, diante das irmãs, aparentemente sem suspeitar que era saco de ressentires. Em certa ocasião, quando as ocorrências sonambúlicas se mostraram diárias, a mãe exasperou-se, assumiu feições de bruxa. Prendeu Rosa de pé, roxa de frio, com uma corda, a uma cama de dossel, cuspiu-lhe na face. A figura lembrava Andrômeda nos rochedos, diante do mar, e não haveria Perseu para a salvar. Um ou outro buchicho na Alfama, já que a mãe era de preparos para dores reumáticas e poderiam, sim, ser taxadas de feiticeiras as mulheres da Roseira. A avó, Rosa, há muito falecida, às vezes aparecia no mirante e ficava a olhar, com uns olhos de vidro, a neta que choramingava. Um dia lhe segurou o braço. Então Rosália só voltou a andar dormindo depois que Cristino nasceu.
O doutor Wong Lam expôs, na sessão com os enfermeiros, o que sua sabedoria apreendia dos quadros dos pacientes. O grupo estava às voltas com várias gradações de perturbação mental naquela casa, todas pelo menos um ponto acima das neuroses. Crises morais, de resistência ou luta contra as fatalidades da vida. Crises espirituais, que careciam mecanismos subjetivos de ação. Óbvias desordens físicas, com intervenção de microrganismos ou degenerescências do tempo. O diagnóstico mais rápido era a demência senil. Alucinações e delírios, todos os atendentes presenciavam diariamente.Atividade paranormal não fora verificada. Transes, quase nenhum que eles pudessem compreender.
Depois da aplicação do Lian Gong e de outras técnicas da medicina chinesa, casos isolados de agressividade se verificaram, diminuindo com o passar dos dias. Mesmo para os profissionais, o ambiente andava mais ou menos equilibrado. Todos os enfermeiros se interessaram e dispuseram a aprender novas formas de tratamento. Em breve, dois acupunturistas auriculares se revelaram. O trabalho com bowl também foi empregado. Respiração holotrópica. Prática musical, pintura, escultura em argila, em massa de modelar. Um espaço para leitura foi inaugurado, com narração de histórias, dramatizações cantadas, dança de salão. Trabalhos manuais, horta, cultivo de plantas para alimentação e preparo de fármacos, um tanque de peixes e a presença de animais de estimação nas várias dependências. Dos setenta e dois pacientes, cinquenta se mostraram mais ou menos aptos para exercer alguma atividade no Casaredo. Tal estatística impulsionava ainda mais o trabalho dos enfermeiros. Momento de alegria, o atleta da Madeira avisou, viria visitar seus apadrinhados.
As organizações nacionais, interessadas em prestar assistência, alguns representantes das cidades vizinhas, eram guiados pelos atendentes quando vinham ao Casaredo. Empatia era a tônica das conversações. De maneira coerente, as falas dos enfermeiros enfatizavam o direito à vida, o respeito mútuo, a profilaxia e prevenção dos distúrbios da saúde mental, discurso espontâneo, sem palavrório ensaiado. O termo, saúde global, era frequentemente lembrado como direito humano. Às quintas-feiras, um ou outro médico, político, terapeuta, fiscal, representante da indústria farmacêutica e artigos hospitalares, repórter, correspondente ou apoiador almoçava com a equipe e se encontrava com os pacientes, qualquer que fosse o estado deles. Não havia mistérios. Os invejosos e contramão da vida também apareciam, ficavam impressionados e iam embora, para aprontar das suas.
Diferente de outros asilos, no Casaredo se escutava o sutil burburinho das lavadeiras, fiadeiras, catadores de oliva, uva, um ou outro som de martelo ou vassoura. Brincos de infância, cantigas maternas e roupas no varal. Um violino, o piano, um violão, alaúde, sanfona, canto. Cheiro de pão, doce de leite, sardinha assada, frutas, vinho e guache. Uma prateleira com objetos de cerâmica. Um cão aqui e ali, com suas gentilezas. Um jumento. Uma charrete. Uma vaca. Duas cabras. Um galinheiro. Um ou outro gato, a dormir ao pé de uma cama. Petecas. Bolas de meia. Bonecos. Blocos de montar. Cabeças branquinhas, camisolas claras, janelões abertos a receber a brisa marinha, o mar perto, as marés, as gaivotas, as faluas.
Manoel andava entre encantado e taciturno. O serviço de lavanderia melhorara muito no novo hospital, assim como a limpeza dos urinóis, agora comadres em aço inox. O enfermeiro se obrigou a sair da zona de conforto. Foi aprender acupuntura. Especializou-se na acupressão, com mérito.
A senhora Antária, sentada em seu leito, tricotava um poncho. A solidão desta mulher era objeto de preocupação da equipe do Casaredo. Também ela sofria de mutismo seletivo e poucos tratamentos a demoviam no desmanchar das mágoas. A senhora apresentava hematomas pelo corpo, como se fora reiteradamente espancada. O doutor Itaú, durante a ronda, perguntou sobre ela. Maria descreveu os sintomas, as prescrições. A conversa chamou a atenção de Madame, que olhava para eles. Ela ergueu-se nos cotovelos, encarou a mulher a seu lado, sentou-se melhor e pegou seu caderno.
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