educação de platéias
Um amigo me descreveu hoje uma cena veneziana: há uma praça imensa na cidade onde, pelo fim da tarde, a água toma conta. As pessoas ficam por ali, com os pés enfiados na água, e começa o happy hour. Muitos espaços de música se organizam então. São sete pianos meia cauda às margens deste "lago", para falar só deste instrumento. Tudo começa muito suavemente. Um grupo musical começa a tocar. Depois outro e o primeiro pára e assim a noite entra. Pelas vinte e uma horas, todos os pontos de música funcionam ao mesmo tempo, oferecendo aos passantes um espetáculo bem temperado, diversificado e rico, acessecível, simpático. Dessa forma, a música - vários estilos convivendo na praça democrática, está sempre disponível, visível, audível, convidativa, estimulante, renovável.
Poderíamos argumentar que o cenário auxilia, que estão lá os venzianos e turistas se divertindo, numa cidade linda, européia, histórica, sexy, aprazivel, etc. Que a música se beneficia deste cenário, que os músicos compõem este cenário.
Não é só porque estive presente a um destes eventos na qualidade de cantora, não é só porque tive, mais uma vez, a honra de tocar com músicos interessantes, estimulantes, um tipo de música curioso, que custa a estes músicos algum trabalho, algum empenho. Já toquei com eles num cenário paradisíaco, dentro de um lago chileno. Toco com eles amiúde no lugar mais instigante de Curitiba, o Teatro Paiol. Toco com eles desde 1997. A nosso modo, somos cenário curitibano, fazemos história por aqui há vários anos.
Não posso crer que professores, de crianças, de jovens, demonstrem tamanha indeferença, insensibilidade a este cenário curitibano. Que vibrem de forma a subtrair a estes músicos a energia, a confiança, o gosto pela prática musical. Sai do evento triste, esmagada pela inércia da cidade, das pessoas da cidade. Órfã da cidade. Sem sorriso. Esvaida pelo desprezo das pessoas. Pelo desrespeito das pessoas. E talvez nem seja. É um nada, como se não tivéssemos estado lá.
Quero que todos entendam que não há mágoa nesta crônica. Enfado, talvez. Sono, muito sono. Como diz o Ed Motta, ficar em casa e não precisar por os chinelos é sempre bom. Fazer shows é mesmo complicado.
Aviso aos professores das crianças, colegas de profissão, que não desistirei do meu trabalho. Continuarei apostando no canto que canto. Continuarei tocando em Curitiba. Esperando, é claro, o dia da libertação. O dia de cantar em Veneza. Aviso que não comprometerei meus dias por conta da ignorância - no sentido de não conhecer, não querer conhecer e ter raiva de quem conhece. Continuarei tomando aulas de canto, estudando novos timbres, brincando com os fonemas dos idiomas - não, não sei falar nenhuma das línguas que canto, professora, porque não são línguas, são sons, é música. Continuarei trabalhando a voz aberta mas coberta. Continuarei estudando Schubert, Schumann. Lieds. Árias. Ópera barroca e romântica. Os modernistas brasileiros. As cantoras de A pessoa é para o que nasce.Abrindo meus ouvidos para o mundo, os meus braços para o mundo.
Voltarei ao Espaço Torres amanhã, as oito e meia...talvez um pouco rouca, porque controlar as emoções nestas condições é expiação.
p.s. 1 no dia seguinte, dois novos grupos/platéia de professores se revelaram levemente mais receptivos.
p.s.2 passados alguns dias, ficou uma sensação de vazio irremediável, causada pela maratona. Foram tres dias de show, dois por dia. Somos incorrigíveis, gostamos da nossa lida. Tocar é divino. É isso.
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