Vértebra 35
Dl 5, iupirubo ou o choque
A nova fase foi toda escrita sem a intervenção de Dona Temístocles. Responsabilidade expressiva de Xaxim Verdadeiro. Manaos, a cidade rio, tinha coração. Era zona franca, onde dimana ouro verde. Plena d’água no verão, seca no inverno, salvo maresias. Os lugares onde passar, muito brancos, muitos autos e nitrogênio aos goles, aves de metal pelo céu e rostos (multi)faceados. Para ver o Rio Amazonas era preciso entusiasmo nas pernas, disposição nas ancas. Fia não nutria ilusões. Estava cedida àquele recanto, pelo tempo da UFAM[1]. O Distrito de Saúde Fluvial, seu primeiro porto puca, primeiro trabalho
O nome da carteira de identidade a apresentava, abria a floresta. Fia Uslu. Definia um ser além, como se fora árvore que anda. Fia, uma mulher índia mescla, que tem bolas nas mãos e as transfere a outros, na medida dos imperativos. E, bem, fora ela a escutar o nome novo, do carinho de Catira naquela tarde de choramingas. Auto batismo, livre-arbítrio de quem passa muitas vezes pelo ritual de furar a orelha. Como andaria a senhora que cuida do velho Selim? Refizera os passos da filha? E as ciumeiras com as mulheres? Agora o sentimento tinha toda razão, Mayara reinava ao lado do patrão, irmão de música. Os dengos e a vocação para diva enfeitiçavam.
Fia de Manaos sentia pena, dor e alegria. E muita gente diz que índio sente floresta. Pois sente pena, dor e alegria. Frio, calor, fome, urgência. Ao olhar as nuvens do céu manauense, a tesoura para corte de cabelos no ar, era o passado a escorrer, potencial de chuva. O presente era antena lunar. Ceição, uma aliada de coragem, ceifadora na tecelagem dos dias, soror no conhecer a noite. Isi, o ventre que chegava antes, uracizinho gracioso, força da natureza. Jovino, rapaz soturno, pura canção, logo acharia seu roseiral. Os outros meninos mangavam por ele ser calado. Ficava longe.
Janjala, a Ema[2] de João Claro. O bebê a buscava com os olhos negros, uma graúna, um pastor. Fia olhava esse contato como a mais bela boda terrena, um alívio de mão dupla, tempo de pupa de curar. Mãe que era, transferiu ife para a menina mulher cuidadora. O suficiente para senti-la arqueira valorosa, protetora dos pequenos, das mulheres. Todas as noites, quando chegava dos estudos e ia cheirar as crianças adormecidas, amontoadas na sala, Fia acionava uma bola de margaridas para nutrir o íntimo da preta azul, para permitir que ela fosse levar lembrança ao Tamõi. E que trouxesse do lago de Tupã ânimo necessário para transpor seus contratempos, contracantos e síncopes.
O apartamento no quinto andar, ladeado por janelões, deixava ver a Arena da Amazônia. O que dizer a respeito? Fenômeno das cidades, voos de cabeças olímpicas. Fia fixava o horizonte e dava com os caminhos da própria flecha. Vinte e três saberes, almas corpos para consolar. O seu corpo esperava nada. No ensino médio, seguia os conhecimentos nacionais e internacionais como se segue o rio abaixo. Nos livros, imergia histórias ancestrais, geografias, modos de agir e pensar de vários povos da Gaia. Via nas histórias a própria andança, as próprias câimbras. Dormia quatro horas por dia, às vezes distribuídas num intrincado de afazeres. Deixava a Ceição a arte de delegar. Tudo corria bem na casa e arredores. O interior era simples, os jiraus substituídos por estrados rentes ao chão, individuais. Havia também redes bem espalhadas. Um balaio confortável para João Claro. Mesa e cadeiras na beira da cozinha. Lá um fogão, a grande novidade da geladeira, um balcão. Optaram por prateleiras e ganchos para os utensílios de cozer, vestir. Lugar colorido, fácil de manter. As distrações eram os passeios pela cidade, que a família fazia a pé e pela rede de ônibus. Quando podiam, pegavam as barcas no rio. Dentro da casa, muita leitura, o toque de Jovino. O celular e o computador eram centros de informação apenas. Não se gastava tempo em eles. A imaginação estava na voz das mulheres, manancial de lendas, fábulas, causos. O que viam e escutavam nas ruas era matéria viva para horas de prosa. Jovino gostava de gravar as vozes. Ficavam boas ideias para letras, versos. Serviam igual para apaziguar os Espíritos Betinho e Heloana. Os companheiros de rio seguiam perto dele, tristes, encolhidos. Jovino não contara disso a ninguém. Difíceis certas companhias na adolescência.
Fia tinha seu turno no distrito, nos cento e setenta quilômetros de atendimento às comunidades ribeirinhas. Trabalhava na faxina e, por mérito, fazia curativos. Curtiu a emoção na sutura. Nos intervalos, buscava saber sobre profissionais que usavam a energia das mãos. O telefone celular não substituía o baú de Dona Tem. Sentia-lhe a falta e a lide com o conhecimento. Fia aprendeu a conversar com a portuguesa do GPS. Ia com ela para recantos de Manaus que só com anotações. Fia tinha esse compromisso. No dia em que estacou, diante do Teatro Amazonas, sonhou que caíra do mundo. Para o caderno, ainda em branco, os retratos de gente templo tempo chuva que lhe causavam espanto. Ela pedalava onde estava o necessitado de irradiação. Foi desse jeito que criou sua oficina de enfermagem.
Chapéu quebrado na testa, até demais. Caído no meio fio da Colônia Antônio Aleixo. Sangue do lado direito, como se perfurado no fígado. Fia, zoina. Encostou a bicicleta e foi-se chegando. O rapazote no beco disse deixe esse bode ai, não vale atenção. A índia moveu a mão com sutil lenir e uma bola de amorinhas fez o moço calar e tomar rumo. Contatou o corpo de bombeiros pelo celular, explicou a situação. No pouco que esperou pelo atendimento, a mão trabalhou por dentro, ventosas luarizantes. Desviava os nojos, contornava inúmeros fratricídios, fieiras de ovários destruídos, úteros arrombados, glandes decepadas. Era tanto pesar que os recursos de Fia surtiriam leve brisa. Ela soube, enquanto executava os movimentos, que o Yorimã permaneceria na Gaia, confinado em seus acessos de estupor. Até que fosse definitivamente parado. Por um instante, o índio deu com ela. Seu olhar era de nada da Gaia, tanta dor que não cabia em oceano algum. Fia deixou-lhe uma faísca de lisianto, era o que tinha. Quando os bombeiros chegaram, ela já tinha partido. Quantos caídos, esfaqueados, baleados. Sozinhos. Em passar por indigente, o rapazote sonso disse que a mulher o chamara Yorimã.
A narrativa, assim posta, pode reduzir a expressão de Fia a poderes sobre-humanos. Pois eram bem usuais esses fachos magnéticos que fluíam, da mão esquerda em maior potência, e se temperavam com a leveza da direita. Não era permitido a ela ler a mente ou comunicar as clariaudiências. Conhecia na prática a anatomia, sabia coser por dentro, estancar o abcesso de dentro para fora. Compartir sem escândalo, delimitara cedo seu campo de ação. Eram tarefas da mata. A estadia em Eirunepé dera à índia padrões muito sólidos. Sabia discernir sobre o que era bom, durável. Lidava direto na resistência, ajudava a renunciar. Sabia respeitar as escolhas. Sabia quando usar placebo e quando extirpar de vez o incômodo. O caso de Tijuca era muito grave e ela só pode remediar. A presença enérgica de Ubiratã, idealizador do encontro, foi uma chuva morna. Parar o índio, para que não ocorressem coisas piores. Era necessário. Muito ainda a ser feito para que o ódio permitisse outro sentimento. Um pouco de reclusão dentro faria bem.
Comentários
Postar um comentário