Vértebra 34
Ds, pyárõryua ou o sagrado
Xaxim Verdadeiro, morando ainda na palafita, fazia parte de uma classe escolar a que Dona Tem chamava ‘engenho’. Em certa tarde, Byr recebeu a tarefa de expressar, através da escrita no idioma oficial, todos os seus vinte e um saberes. Exercício exaustivo, duas horas para dissertar sobre os conhecimentos gerais no cotidiano, da maneira que achasse justo. Poderia usar o dicionário. A índia enfileirou em um bloco de anotações dez itens, baseados nas cantigas de puca do Eiru que inventou, o tempo de gestar Isi’po, e mais quatro, por ordem de precisão. Os temas indicavam sua fonte, o seu sagrado, a sua estrutura óssea, o seu íntimo purificado.
Cantiga para o nascer de Uraci. Os raios solares emanam ciência, filosofia e religiosidade. Fonte, de luz, de calor, de germinação, fotossíntese, respiração. Água. A comida do pulmão da Gaia. Fonte. Jacarandá. Fonte. Platelminto. Xaxim Verdadeiro. Fonte. Isi’po. Fonte. Pele. Fonte. Ferimento. Fonte. Realidade. Fonte. Raça. Condição passageira. Caminheiros. Enxergar através, a Mãe-do-raio. Juru(a). O som quente do rio lava a pele e os cabelos cipó. Uma bonita jornada, de susto. De superação.
Cantiga para evocar Ara-cê Yara. A estrela alva. Foco, o ponto de convergência de todos os fatos, atos, tratos. Ficar em pé. Luneta. Lápis. Folha brilhante, que suporta o gris do grafite. A mais descamada das peles. Foco. A argila depuradora dos passos dos outros. O magnetismo. A convivência. As bolas que brotam da mão. Mainá[1], um livro que Xaxim Verdadeiro quis escrever.
Cantiga para suportar as onze-horas. Jardins de Tupã, grinaldas penas, colares sementes, o horto da abobé. Para quem não sabe, abobé significa avó. Herança. Anhangá. O antúrio. O rio do Tamõi. Tamõi é avô, o mentor. Os dias parágrafos de história. Cantos para Aldebarã. A achada entre vermes, o dia do exame de admissão. Conhecer branco, preto, vermelho, amarelo, multicoloral. As três raças tristes[2], poema que Byr quis escrever. Byr, o nome que o avô lhe deu.
Cantiga para os dias que virão. O Pico da Neblina acorda entre brumas densas, acalma a tosse das cabreúvas vermelhas tombadas. A queda do céu[3], outro livro que Byr quis escrever.
Cantiga para zane pytun. Água do Moa, junta água do Yorimã, puxa poraquê, desagua na Serra do Eldorado, segue quieta e bulhenta, explode no Atlântico Rei. Xaxim Verdadeiro mulher. Água que cai do céu. Um índio[4], o sonho de Xaxim Verdadeiro.
Cantiga para o mormaço. Pele apertada no caldo pantanoso, à volta do ventre. A arte de alisar. Difícil o movimento de ficar em pé. Isi’po corre e se ri. Ela toca o corpo vestido, verde-água, e se ri. Jovino toca a viola, verde-argila, e chora. Ficar parado sem parar, ficar em silêncio sem ficar. Os três olhos acesos. Ficar com falta de verde-sangue. Mergulhar no fenômeno verde chumbo. Agir com a palavra. Escrever. As bolas que brotam da mão. Ife, para quem não sabe, amor. Ave que vê o ar, um pássaro de olho azul; ave que veste a luz, um bicho que sabe olhar (...) [5], o canto de Isi’po.
Cantiga para a verdade. A Gaia, cheia de precipício e cidade e Serra do Acará e usina. A Gaia, cheia de gente de todo tipo, sacerdócio proletariado. Gente a vadear. A Gaia, cheia de tudo que os irmãos nomearam gente. Uma cartilha interminável de Sapucaí, rio do galo das quatro horas. Sapoti maduro, maritaca, gente.
Para a cantiga de João Claro. Pirandirá mordeu a carne tenra do curumim, causas milenares. A ciência permitiu que ele ande em cadeira com rodas. Que segure a colher e leia as histórias. Que olhe através. Janjala, seu luzeiro. O gigante Maverick, que lhe botou a semente, vem visitar todas as noites, no desprendimento do sono. Este pai conta que a mãe, ainda no ambulatório das almas, canta o dia de vir também, para olhar o rosto tão bonito do anambezinho, ave que vê o ar. Maverick conta que o céu é forte e que não, não vai cair, que Tupã sabe o peso de tudo. Mais do que todas as histórias que o gigante conta ao filho, é o sopro de coragem e a dose adicional de ife que doa, para que seu menino tenha o que ofertar a Xaxim Verdadeiro, a Isi’po e à nova família. Também para que não esqueça deste pai que na Gaia, fez proteger desvalidos. Que não esqueça da mãe, Indiara, hoje toda rio. Sobre a avó Mayara, ainda na Gaia, contou que ficaria para outra hora lidar com Lei e fascínio. Ficava a Alcayaga, de andaluz para João Claro. O cabelo alourado do menininho lembrava Leo festeiro, a cavalgar na colina. Logo, o sonho febril ia virar juba leoa e cortar a riso todos os desertos. Porque as crianças precisam de esperança.
Cantiga para Iaci. E os encontros com tantas mães. Disso não se fala com ninguém. Guarda-se (para si) o brilho prateado, o manto de lumeeiras. Há que se medir o que se conta, o que se canta, o que se expressa. As bolas que brotam da mão. Isso é inventar com responsabilidade. A cada movimento lunar, o revide dos três e um momentos. Aquele chapéu quebrado na testa, o quebrador de ossos importantes e de encantos, trouxe Curuatinga em pessoa, em noite de Iaci. O pajé ruivo entrou pela janela aberta e mergulhou no corpo e alma de Byr, e sorriu estou contigo estou dentro e fora e sempre. Que a Lei se cumpra. Isso só se conta em literaturas. Que as mulheres precisam de esperança. Se pudesse, Iaci ofertaria flocos de milho refogados em manteiga quente. Curuatinga ainda disse que, mesmo sozinha, Xaxim Verdadeiro estaria consigo. E isso era a grande graça prateada.
Cantiga para Ife. Finalmente Nheengatu, idioma ancestral. Byr já segurava firme o lápis, igual a pena e pincel. Grafitar era coisa para Hipz[6]. Escrever, deixava para Itamar[7]. Em cinco anos, muitos ciclos lunares, muito apoio de Orun Tamõi, da abobé, Sá Ana, Dona Tem, Catira, Mayara e Selim. Ceição irmã. Juntam-se conhecimentos em um caderno verde-musgo. É o começo da puca de voar. Manaós. O caderno guarda a cara do homem que lhe plantou Isi’po. Uma grande festa no céu. A seriema quebra os cocos e os potes no fundo da palafita.
Xaxim Verdadeiro largou o lápis, era a décima oitava hora e a luz dos postes, recém instalada na travessa de Eirunepé, dava ares de cidade ao rio. Byr respirou, pôs-se em pé e leu, sem tropeço. A professora, Dona Tem, ficou calada por um tempo sem fim. Xaxim Verdadeiro na espera. A luz da lâmpada pendurada sobre o tamborete, rebatida por um lustre de renda, dava ao ambiente um tom choroso. A professora anunciou, por fim, a visita à Escola Estadual Nossa Senhora das Dores, onde Xaxim Verdadeiro faria o exame de conclusão do Ensino Fundamental, aos vinte e um anos. Foi lá que pediram documentos e comprovação de residência.
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