Vértebra 20




L1, Sabiá-laranjeira, o décimo terceiro pássaro, ou a justiça

 

Não faltam bonitezas, amores despertos. Nascimentos, suspiros, tombos. Maneiras de servir. Aniversários, frutas. Efeitos do viver. Bodas, o mar. Rendas. Risos solares, linfa pura e monção. Até passamentos, rio e flor. Não faltam tempos de cortejar. Não faltam tempos de anistia. De nutrir o coração. Nem de memórias farfalhantes. Falhantes. Falantes.

 

A claridade da manhã fazia brilhar mais azulado o rio das palafitas.  O Juruá arenoso, em especial junto às embarcações. Gentes da região, turistas iam e vinham. Cientistas, diletantes, religiosos. Estes vinham conhecer o lugar ao qual chamavam exótico, primitivo e por isso cheio de mitos, lendas, histórias esdrúxulas e matéria prima de conversão. Cada qual propunha, com suas percepções ímpares, fantasias, sonho, senso.  

 

Mayara chegou à Amazônia com a filha em uma maca. De ônibus. A senhora que cantava morou por muitos anos em Uberlândia, Minas Gerais. Era professora de voz em um conservatório. Quando a Indiara nasceu, Mayara passou a atender alunos em casa e assim mantinha o orçamento para os remédios e tratamentos da criança. Demorou um pouco até a medicina vaticinar que o caso era terminal, que a Indiara não duraria muito tempo. O nome da patologia era mais complicado, mas Mayara gravou como Síndrome de Werther e ficou assim. A dor foi mirrando a confiança de Zenaldo, o pai, que feneceu quando a filha ainda não completara dois anos. Mayara, com a Indiara às costas, recebeu de pensão o pedaço de chão onde agora pisava. Vendeu piano, clarinete, flauta, violão, vendeu tudo o que havia para vender e veio a Eirunepé, a filha desenganada, uma vontade de saúde que contagiou logo a comunidade. Ao lado delas, três dos antepassados huguenotes do marido, Antônio, Luís e Catarina. E como cantava a senhora. 

 

Em uma tarde dessas, parece que vai desabar o mundo, subiu a travessa o velho Selim, à revelia de Catira, a quem deixou esbravejando no portão. Selim levava consigo um estojo preto, de uns sessenta centímetros de largura e um pouco menos na altura. O menino Jovino, quando viu uma oportunidade de passeio, se ofereceu para carregar o volume, que não era pesado. Só lhe foi exigido muito cuidado. Curioso e esperto, Jovino quis saber sobre o conteúdo e o velho lhe disse que já descobriria.  

 

Selim tinha seu jeito, não inspirava muita fé no começo, mas era só conviver um pouco para saber tratar-se de figura generosa, um arrimo para toda aquela gente ribeirinha. Não houve barriga d’água na travessa que ele não tenha auxiliado a tratar. Era comum vê-lo na igrejinha a batizar crianças, embora fosse muçulmano. O Padre Camilo vinha sempre ao seu rancho, para conversar sobre o oriente e tantos outros assuntos de interesse comum. Quando Selim chamou, Mayara mexia um tacho de doce de batata doce. Deu com a mão, para que o velho se achegasse. A simplicidade do espaço era uma deferência aos vizinhos. Havia flores, asseio, lugar para sentar, sempre um prato de alimento, uma beleza de habitação no meio da floresta. Selim foi logo abrindo o estojo, e dele retirou um mean oud oito cordas duplas. Os olhos de Mayara quase saltaram das órbitas. O velho explicou, em espanhol carregado, que o instrumento não era tocado há muito. Tinha sido de sua mãe. Selim queria saber se Mayara conhecia, se sabia tocar. A resposta veio em espanhol culto, que ela havia estudado violão clássico, talvez pudesse descobrir a sonoridade do belo objeto. Os dedos dela se moviam no ar, independentes, festivos. Que bela oportunidade se apresentava naquele momento. Mayara não trouxera na bagagem partituras, livros, métodos. Selim assegurou que mandaria vir os que ela precisasse. E assim começou talvez a amizade ribeirinha mais bonita da Gaia.

 

Embora se utilizasse de métodos extremos, Maverick representava segurança para a comunidade. Nunca se soube se matara alguém. Nem bicho. Sabiam, contudo, que os justiçados apareciam longe dali, nas mais bizarras condições. Vivos, contudo marcados. Todos na região o cumprimentavam com recato, sem muita intimidade. Quando Maverick aparecia, sabiam que algum corretivo estava encomendado. Dessa vez, porém, com humana habilidade, Maverick veio apenas deixar uma caixa para a senhora Mayara e olhar comedidamente a Indiara. É preciso deter-se um pouco neste ponto, contar o encontro de Maverick com a senhora cantora na tarde do Jiréu. 

 

A turbulência provocada por Conceição tinha deixado a comunidade em trapos e uma crise silenciosa acometeu a Indiara. Mayara até pensou que era chegada a hora. Maverick passara, arrastando Jiréu pelo ombro e a senhora lhe pediu ajuda, desesperada. Ele depôs o embrulho no porta-malas, como é sabido, e voltou. O que encontrou trouxe-lhe reminiscências que seria impossível descrever naquele instante. Sem respirar, tomou a linda mulher nos braços e a carregou para a perua. Mayara ficou na porta, agarrada a Isi’po, imóvel. Maverick ainda disse, com sua voz muito grave e imperiosa que ficasse em paz, voltaria logo com notícias. 

 

Quando tudo se abrandou naquele inicio de noite, coube a Byr apaziguar um a um os moradores da travessa. O perigo havia sido real. Todos sabiam de agentes que aliciavam crianças, adolescentes, mulheres e mais tarde os vendiam no mercado negro para os mais diferentes fins. O homúnculo que viera, quem sabe roubasse uma ou duas crias, ou fizesse parte de um cartel. Melhor nem saber, para não criar estado de sítio. Talvez Byr nunca tivesse de fazer novamente tantas imposições de mãos em curto prazo. Depois da conclusão dos trabalhos, auxiliada por Sá Ana e Catira, Xaxim Verdadeiro passou a noite ao lado de Mayara, que ardia em febre. Isi’po a tudo isso acompanhou e seu interesse pela vida, pela Gaia, pelos homens se fundamentou na experiência de cura da mãe. 

 

Nas tendas dos Médicos Sem Fronteira, a alguns quilômetros dali, a Dra. Ângara tomava o pulso da Indiara, que dormia. Eis um caso para longas pesquisas. Os exames de rotina estavam normais. Não era possível medir a atividade cerebral naqueles rincões. Os testes básicos para captar-lhe reflexos, respostas elétricas, inconclusos. Com toda presteza de seu julgamento, a doutora disse a Maverick que era mais justo levar a moça novamente para a mãe. Se tivesse de morrer, que fosse ao lado dela. Maverick aquiesceu e só ele e seus benfeitores poderiam avaliar-lhe ânimo. Com a Indiara nos braços, Gaetano e Dinis ao lado, Maverick voltou ao bairro das palafitas. 

 

Na quinta hora, ameaça de temporal, o homem encorpado depôs o fado no jirau, ao lado da mãe febril. Maverick pouco falou com Byr, o suficiente para contar que a situação se estabilizara e que ele voltaria em breve. Entre os dois igualmente se compôs aliança, dessas indestrutíveis e redentoras, feitas de matéria menos densa. Na oitava hora, Byr ofereceu chá de louro a Mayara, que abraçava a filha e chorava. Isi’po, sentada na soleira da porta, viu pousar no próprio dedo um sabiá-laranjeira. Kadosh taramelava no seringal. 

 

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