Vértebra 14
T7, tiê-fogo ou a abundância
Todos precisam de cotidianos des importantes. E o que são as lembranças em eles? Abundância. A puca do vestido foi, para Byr, modernidade. A mata estava lá, ao alcance das suas pernas. Nadar ela também sabia. Isso Byr memoriava às vezes, quando vinha um tremor na panturrilha e doía até que ela estendesse a musculatura. Até para essa situação havia uma cantilena. Durava um tempo a mais que o puxão do tornozelo. A sensação veio no momento de olhar a cara daquele índio. Byr, que queria correr para longe, longe, longe, teve de rilhar os dentes e entrar meio a trambolhão. O índio cismava olhando adiante, não a viu. Agora Byr não poderia cantar, esquivar-se. A pequenina brincava, por sorte, não deu pela mãe atrapalhada. Jovino entrou e saiu, também sem ser notado.
Havia na garrafa sobre o tamborete um pouco do licor de Cândida. Xaxim Verdadeiro fez dele elixir e o mal súbito foi embora. Naquele momento do dia, as sentinelas estavam nos seus galhos, a fazer trabalhos de dar de comer, arrulhar, gritar, observar. Há tempos Byr não via sauá. Quando as apoquentações eram absorventes, eles ajudavam com os brincos. O tiê-fogo havia chegado há dois sóis, em seu fraque elegante e olhar arguto. Encarou Byr como a dizer: e então, qual a boa nova? A índia respirou melhor depois do gole de licor, sentiu sede, lembrou do suco de caju que viera na cesta. Diluiu um pouco na água da bilha e ofereceu a Cipó, que riu e piou comprido, a ponto do tié responder. Byr não era de fazer perguntas, tampouco achar respostas. Era força da natureza.
A história não vinha feia ou atraente. Nenhum conflito. Tijuca, invasor da sua meninice. Outro que chegara no momento em que a identidade da tribo virava pó. Bulia com seu cabelo, seu suor. Era farpado, diferente dos outros irmãos, diferente de Curuatinga. Quando Tijuca a cobriu, parecia coisa corriqueira, simples. Deixou pouco rastro. Cobriu, dormiu e não teve maior juro. As outras mulheres entenderam justo o acordo. O alvo de Tijuca era Curuatinga e ele nem despistava. Queria ser cacique. Descontava em Xaxim Verdadeiro alguma zanga, às vezes ficava vergão. Orun Tamõi tratava com guaco.
No último fogo de conselho dos homens, Tijuca puxou facão na voz. Desagravo que Curuatinga respondeu com piado de tiê-fogo. A contenda no corpo foi na mata. À traição, como era de se esperar. Curuatinga, detentor de todo conhecimento da aldeia, morto. Orun chorou. Saltou por quarenta e nove horas sem parar, para que a alma do cacique tivesse bom pouso. Depois rodou, rodou por tempo sem fim, para que Tijuca não mais retornasse. Orun sabia. Somente em outra pátria poderia ser benfeitor nesse gravame.
O tiê-fogo quieto na árvore. Byr tratou de arrumar suas coisas na palafita. Depois, pegou um toco de bordo e começou a entalhar. Pela décima sexta hora, o espelho como que sussurrou de dentro do baú. Convidava Xaxim Verdadeiro a olhar o próprio rosto. Ao separar um pedaço da franja para cada lado da testa, Byr alcançou um pote com urucum e reforçou a faixa sobre os olhos, até ficar da cor das penas do tiê-fogo. O coração morno nada guardava, a não ser seu compasso quieto e lealdade. Em uma tira de couro, Byr amarrou o pássaro entalhado e prendeu no colo. Com o vestido da abobé, agora seu, parecia blindada. Tijuca que viesse. Colocou os livros e o espelho no fundo do balaio. Os facões do lado. A água olorosa do vidro, que cheirava um pouco a urina, deu um acabamento peculiar ao seu perfil. Nessa hora, Byr começou a cantar. Pequeno, para não invadir a noite, para blindar a tapera, sua cria. Era o aunguhi que Orun entoou no dia em que Curuatinga morreu.
Byr tomou Isi’po nos braços e saiu, segura, para ver como reagia Selim ao voltar da morte. Na vizinhança, calma. Quando Catira pôs os olhos em Byr, convidou-a a ficar no rancho até a dureza passar. Urubitinga, nessa noite no galho do mamoeiro de Sá Ana, aprovou a decisão.
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