Hospital Casaredo 103




(...) Será
La cárcel verde de mi libertad
Sordo murmullo en mi intimidad
El sol que llora cansado en el mar[1]

 

E veio, o compositor em pessoa, tocar o Bolero a los padres[2] no Hospital Casaredo. Vicente aceitou o convite da senhora Chang para visitar a Instituição e divulgar seu novo álbum. O enfermeiro Javier bailou durante a récita, encontro de futuros aquele. 

Tetetéte, o gato, olhou tudo, do começo ao fim, às vezes assustado com as batidas do salto do sapato flamenco. Manteve-se enroladinho àquele colo tão magro de Madame. A senhora escreveu o que viu, ouviu, queria agradecer e foi uma ação angustiante, contou ela ao enfermeiro Gaspare. Fosse como catar lentilhas ruins à peneira, estaria em paz. Era como retirar pelos de gato à coberta, antes que chegasse Matilde e reprovasse, aquela filha bruta. Madame recolheu os sussurros e ais da assistência buliçosa, embriagada, saudosa. Era estranho o seu estado, um espírito tão claro e, ao mesmo tempo, a percepção da dor de seu quadril rodado, da lombar pressionada, um incômodo pungente no estômago, que não lhe permitia desfrutar do som como gostaria. Algo chegava, a tempo, não havia que temer. Feito ladrão, hábil, certeiro, feito príncipe, chegava. 

Assim que os aplausos cessaram e o músico se retirou para a sala camarim, Madame foi rodar em sua cadeira. Prudente, não ia mais à praia àquelas horas. Deu no jardim da capela, onde o músico Te Dan tocava seu pipa, um contraste poético com o que ouvira no concerto. A pena imaginária da escrevinhadora a deslizar, polegar indicador, polegar indicador e de novo, polegar indicador. Madame pensava futuros nas estrelas. Fez um aceno àquele mestre da Ópera de Shangai e seguiu, até a pedra onde repousavam as cinzas do senhor da Nossa Senhora. Depôs sobre ela um ramo de lavanda. Sabia que dedicaria ao pequenino as últimas páginas de seus escritos. Um sentimento lhe vinha, respeitoso, pragmático, coerente. Distante. Sentia falta dos brados daquele senhor, escutados aos lugares inusitados do hospital. Sentia falta da companhia fortuita dos últimos tempos, dele a roubar pãezinhos na cozinha e a tocar com zelo a sanfona do enfermeiro Gilmar. Pedro Álvarez Cabral, viajor de antigo naipe, por alguma razão veio dar à mente de Madame. O senhor da Nossa Senhora fora-se com ele, Marscha avisou. 

José Gaetano quase perdia o sentido nas lembranças da velha senhora. O comandante, que andava em busca de um feito bom, para muita gente. Seu nome vinculado ao livro dos inventos, ao livro das respostas. Ai, vaidade humana, ai. Ai, José, o que é um nome, o que são um bando de palavras. 

Tetetéte chegou de manso, saltou ao colo de Madame, aproveitou-se do momento em que ela devolveu o caderno de espiral verde ao bolso da camisola. Alma longe, a velhinha lembrou-se de Nena, Princesa, Lino, George, Mário, amigos felinos que atendiam pelo nome.

Nomes, sonoridades, afetos. Alois, Alois, Madame chamou. Tetetéte olhou a dona, entre intrigado e atento, com aquele som que não era para ele. Sob o caramanchão, iluminado por pouca luz, um roxo tímido destacou-se. A cauda do bichano eriçou. O provençal, morador do dormitório quatro falecera, logo após o enterro do senhor da Nossa Senhora. Javier lhe fechara os olhos úmidos. A aparição d’ele sorriu. Naquele lusco fusco, seu vulto olhava tranquilo, bem nos olhos de Madame. 

*

José e seu desejo de ser amado, escreveu Madame naquela madrugada da visita do provençal ao jardim. Recolhida ao leito ela refletia, quanta gente quer o mesmo, somente receber, sem dar. José Gaetano deu de ombros e olhou para trás, a ver se alucinara. Era o Donis à porta da Igreja de Santo Antônio, a dar ordens ao imediato. Ria de orelha a orelha, agitado como um guepardo na carreira. Agora estás a dirigir galeões disse o comandante também a rir, exultante com o reencontro. Deram-se um desses abraços laterais com tapas fortes às costas e se mantiveram em marcha durante algum tempo, a falar de tudo e rápido, que o Donis estava prestes a zarpar. Deixamos aí o carregamento e a companhia de teatro, informou o capitão-mor, esperamos que a tua rouparia tenha escapado aos saques. José nada disse. Temos ainda um trecho a cumprir antes do desembarque de todos os bens dos saltimbancos. Passamos para deixar a diva. Tu a viste? Ainda não se apresentou, segue incógnita no camarote, veste sempre um chamativo brocado amarelo, rosto sob um véu. Mas e tu, como te tens havido com tantas marés? Tu sabes que navego, respiro, colho os frutos de cada dia e me mantenho de peito aberto. Às vezes, sinto falta das cantorias. Estamos em tempos difíceis, ó comandante. Bem o sei. E tu, como estás. Atracado com os afazeres de bordo, respondeu, louco para dizer que morria pelo outro. Os dias duros e os dias sãos estão lá, rabiscados. José mal respirava, indignado com a impossibilidade de florescimento para aquele sentir contraditório. Temia a revolta que se lhe subia e descia, arruinando qualquer tentame de crescimento pessoal. O Donis olhou os olhos do pirata e tal gesto era raro. Se ele abarcava o profundo daquela fala, José não sabia. Acreditava que sim, e que compreendia bem, e que era de compaixão aquele olhar. Derrapar em definitivo na jornada, algo quase inevitável.

Aquele espectro roxo do jardim voltou ao pensamento de Madame, que belo fenômeno, que convite interessante, que peculiar modo de comunicação. Já se divisava no horizonte a estrela branca, a janela do dormitório um aberta, madrugada abafada, quem sabe a chuva visitasse pela manhã. As cogitações seguiram seu curso, guepardo em riste. O sentimento amanheceu. Marscha abriu um cortinado de nuvem e piscou novamente. Entregamo-nos à Terra. Sãos e salvos, choramos, de raiva, de birra. Pouco se pode fazer nestes casos.  A saudade aumenta, apazigua. Serena do amor, serena serená[3]. Madame aguou, sem som ou sal. Vamos deixá-la com suas canções, que ela segue, al otro lado del rio[4]

Chuvisco, a jornada para o vento depois soprará. Aceita, que o caminho é encanto de viuvinhas, capuchinhas e bem-me-queres. Avante, sempre, há lisiantos a florir. O buque de crisântemos espera, dentro de um copo de luz. Enfeite suave, colhido no campo, sem semeadura. Rosinha brava, lavanda e alecrim. Mais flores suspiram. O olhar se demora na rosinha, expressa em botão. Uma ideia, um pequeno talho, uma batata. O galhinho da rosa vai morar na bilha. Segue a expectativa, de nascer um pé de roseira onde a moça mijou[5]. Quanto à lavanda e ao alecrim, colorado, colorin, ainda há o que contar, a jornada alcança o Estreito de Gibraltar.

Esperança às vezes era jade, Marscha, às vezes, rósea. Raras vezes, Rasguito, caramelo. Alois passou a vir mais vezes, lilás. Combinaram, todos, não falar de estrelas ou tarefas com Madame. Iam, voltavam, tornavam, a trazer alguma inspiração para as escrevenças, para os pratos de bacalhau. Madame nada perguntava, ainda não se acostumara  àquele farfalhar, invisível aos demais. Por sorte, ninguém lhe dava remédio nas ausências, eram esquisitices de velho e estava bom assim. Estavam moças lindas, a Marscha e a Esperança. Rasguito, pura fumaça de sol, envolta em sutil camisola de gaze, bordada na barra com lenços namorados. Alois, um facho arroxeado, tímido. Também não disseram, as musas, do por quê das visitas, se presente, ou boas lembranças. Madame aceitava, ungia os encontros com uma pequena chama na sala de preces, ou folha caída de jacinto ou flor que seguia no pé. Arrulhava com as aparições, tranquila pelo inverno alongado. 

 

Não quisera estar junto, quando cremaram o senhor da Nossa Senhora. Uma sensação de quebra, lhe doía. Na manhã das exéquias viera Bernice, ao encontro de Madame, contar a ela, não encontrara processo químico que mantivesse as gramíneas em seu estado original. A enfermeira ofereceu à senhora um consolo, uma bilha pequenina, revestida de laca chinesa, adornada com três mulheres esfumaçadas, uma jade, uma rosa, outra amarela, a base da peça púrpura. Madame tomou do objeto, estreitou-o contra o peito e pediu permissão, para expor o artefato no jardim. A moça sorriu. Os anéis de gramínea, a senhora os recebeu das mãos da cuidadora, já um tanto desbotados. Com a ajuda do jardineiro Jair, plantou-os ao redor da pedra onde dormiam as cinzas do senhor da Nossa Senhora. Em poucos dias, a grama assentou. A bilha deu ao jazigo um encanto peculiar. Uma das cartas para Alois compôs o pequeno cenário, foi coberta de terra, um raminho de sempre-viva para a coroar. 



Nire aitaren etxea
defendituko dut.
Otsoen kontra,
sikatearen kontra,
lukurreriaren kontra,
justiziaren kontra,
defenditu
eginen dut
nire aitaren etxea. Gabriel Aresti, 1963
 

 

Tudo seguia seu curso no Hospital Casaredo. Quem deu para recitar nanocontos foi Lume, um velhinho recém admitido. Dizia-os em basco, aos borbotões, em pé sobre seu leito, a segurar algo diante de si, a singrar sobre os lençóis. Foi a enfermeira Matilde quem teve a ideia de gravar aquelas arengas. Entendia o basco, achou os textos bonitos. Eram ditos em horário determinado, sempre entre quinze e dezesseis horas. Às vezes, repetidos. Pareciam dirigidos a alguém. Uma hora de fala, sem pausas, voz grave, profunda, alegro vivace. Ante a surpresa do enfermeiro Gaspare, dias depois, Matilde ofereceu a ele a transcrição do material das gravações. A narrativa iniciava com a história de um homem que tinha dois lobos dentro, um branco e um negro. Que um respirava alegria, outro tristeza. Que dependia do homem escolher qual deles alimentar. Javier traduzira o material do basco ao português. Uma série, noventa narrativas. Madame, ao ler o primeiro conto, compreendeu que foi esta a forma encontrada por José Gaetano para se comunicar.

 



[1] Canción de Laura, excerto. Vicente Amigo

[2] Composição de Vicente Amigo. Em tempo, Vicente e seu repertório musical foram fonte de inspiração para a história de José e Alois.

[3] Cancioneiro tradicional, Brasil

[4] (Pilar, 10/10/98 – Dona Odete) [Gravação em DAT; nº da fita: 076, nº da gravação:1/2.] COCOS: ALEGRIA E DEVOÇÃO - ANTOLOGIA

[5] A roseira, Sérgio Roberto Veloso De Oliveira / Tio Siba

 

Em tempo, Al otro lado del rio, composição de Jorge Drexler 

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