Hospital Casaredo 101




Recordações chuva de verão


Ao escrever aqueles retalhos de história em seu caderno de espiral branca, últimas páginas, Madame entendeu: o coração quase dissera adeus, seu cérebro gaguejava, cantava a melodia das ondas. Gruta de Fingal[1]. Era preciso seguir, um pouco mais. A equipe do hospital se revezou no acolhimento e em manter seu conforto. Alguém, cujo nome somente o sábio Wong Bohai conhecia, financiou os cuidados de Madame, fartamente. Era como estar no céu. Um novo caderno de espiral verde dormia sobre a mesinha de cabeceira, no aguardo, ainda envolvido em celofane. Madame achou de firmar-se em José, para concluir seu tempo de jornada. Libertou-se dele, foi o que se deu.


O comandante, embora não soubesse o paradeiro do pai, tinha por ele a percepção das longitudes. Olhava as cartas náuticas e sabia, fora necessária a presença do homem para que ele estivesse ali, naquele instante, dono da visão e das sensibilidades. Ao aportar em Egadi, José plantou um lisianthus entre as pedras. Quanto ao pai de Rosália Santana, as saias estendidas entre as árvores deixavam poucas saudades. O que mais os dois poderiam querer dizer de uma família? Tiveram seus resgates. O filho de José Gaetano também não sabia de seu paradeiro.


Ao chegar à Assistência naquela manhã, maltrapilha, faminta, ao pendurar-se à aldrava, Madame aprendeu a ter esperanças. Olhou as irmãs de catre e decidiu-se por fazer valer seu mérito. De alguma maneira, se pôs a consolar a todos do sanatório. Com os enfermeiros, adquiriu o gênio da convivência. Aos homens e mulheres que carregavam em si a água do cuidado, o poço, deu-lhes a caneca. De dentro de seus corações se pode retirar água, sem medo; Madame devolvia sorriso. O poço coletivo dá a todos, sem exceção, dá sabor à vida. Quanto tempo Madame passou, ao largo de tanta água? Quando começou aquela chuva de libélulas, que só aumentava?


Em noite de dança, no jardim da Capela Rosália, eis que Alois se apresentou a Madame. As senhoras Esperança, Marscha, Rasguito estavam lá também, mais um milhão de seres minúsculos. A cozinheira do melhor bacalhau da região desejou expressar ao capitão-mor admiração, afinal era o homem de casaca púrpura que a vinha visitar. O coração dela debateu-se diante daquele porte, da voz ametista que ele mantinha à própria água, lúcida. As conversas com aquele cavalheiro, no terço final de suas andanças pelo litoral português, permitiram a Madame aceitar sua condição, sem revolta. Humilde, permitiu entregar-se, pedir ajuda. A senhora orou, então, para que as irmãs do outro plano a levassem, abrandassem as esmagadoras saudades. Madame despertara entre mundos, e era tudo. Todos os cadernos que ela compusera diziam: ao avistar o sanatório, perdoei. Familiares, amores, gente que descendia do tupi, como Itaú, todos na noite de dança. Ma uraci mara y/ ma iaci tata y/ y epe mã/ y epe mã.[2]  Não, Madame não faria a passagem a sós.


Os músicos do Casaredo se reuniram na terça-feira estrelada, a noite de dança de Madame. Estavam na sala o cravo, baixolão e violão, alaúde e teorba, clarinete e flautim, o pipa, a percussão, voz e porcelanas. O objetivo do encontro, levantar repertório para a formatura do enfermeiro Gilmar, graduação em Arquitetura. Durou hora e meia o encontro, sem que alguém fosse acionado por uma emergência, tempo suficiente para elencar treze temas sem costura, sem arranjos definidos. Tratava-se de sonoridade ímpar, pois eram peças de várias culturas. Isidoro Brando gostaria de cantar, quase tumultuou o ambiente, tamanha a euforia. A doutora Loto, o doutor Itaú e  a enfermeira Joana teriam singela participação. Javier aguardava a chance de coreografar o solo, Réquiem[3].  Foi o primeiro a sair, chamado a um atendimento. O menino Júlio o seguiu, tomou-lhe a mão e caminhou com ele até o dormitório dois. Tinha urgência em lhe dizer que decidira ser marinheiro. 

 

 



[1] Gruta criada por ação vulcânica, na Escócia.

[2] Composição produzida para um trabalho acadêmico, da cadeira de Folclore, regida por Inami Custódio Pinto, década de 1980, Faculdade de Educação Musical do Paraná, Brasil.

[3] Vicente Amigo

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