Hospital Casaredo 100






Quantas sabedes amar amigo,
treides comig'a lo mar de Vigo
e banhar-nos-emos nas ondas.
Quantas sabedes amar amado,
treides comig' a lo mar levado
e banhar-nos-emos nas ondas.
Treides comig' a lo mar de Vigo
e veeremo' lo meu amigo
e banhar-nos-emos nas ondas.
Treides comig' a lo mar levado
e veeremo' lo meu amado
e banhar-nos-emos nas ondas. Martin Codax, Canto V

 

Bastantes movimentos no ateliê, era o dia trinta de abril. A enfermeira Bernice talhava um busto em madeira. Cavoucava um resto de incêndio, imbuia, um antigo pé de cama. A peça surgia, cuidadosamente, uma mulher desbastada a cinzel. Madame se chegou com jeito, quase ressabiada, não era comum as duas estarem juntas. A senhora, assim que Bernice pousou o artefato sobre a bancada e sorriu, lhe estendeu o colar de gramíneas, todas as alianças que ganhara do senhor da Nossa Senhora nas últimas semanas. Perguntou se havia algo a fazer para postergar a morte daquele estranho emaranhado. A moça tomou um dos aros com cuidado, sopesou na palma da mão, refletiu por instantes e pediu um pouco de tempo, precisaria testar alguns materiais. A planta ainda oferecia sinais de vida. Na água, em contato com a terra, brotaria. 

 

Madame compreendeu logo que deveria deixar a artista sozinha, estivera a interromper seu processo criativo. Foi ao bastidor onde ficavam os computadores. Gilmar sanfoneiro desenhava diante de um deles, à nanquim, uma disputa de samurais para a vinheta que ia ao Dores&Risadas. O espaço que dividiam, rico de luz, num instante pareceu congelar, sensação sufocante, peito opresso. Quando deu por si, a senhora estava na UTI, um tubo adentrado ao nariz. A barulheira dos aparelhos lhe avisou a Terra, os vórtices, as espirais. Entrara em uma nuvem morfínica. Gilmar a seu lado, os olhos mais azuis que já vira, um capacete de minerador, iluminado acima da testa. Terra, os vórtices, as espirais. O homem, moreno de sol, tinha o peito desnudo, a musculatura bem desenhada dos lutadores. Um bigode fino, sobrancelhas espeças. Narinas largas, que inflavam como velas de barco, feito direto de um tronco. Ao piscar os olhos novamente, exausta, lá estava o bailaor Javier, seu casaco vermelho, curto, um aceno com as mãos acima da cabeça, a face tensa e bela dos puro sangue. Mais uma descida de pálpebras e um velhinho, pequenino, a segurar nas mãos um pequeno ramalhete de madressilvas. 

 

Madame saiu do torvelinho três dias mais tarde, já era maio, de braço dado com o Espírito de Esperança. A entidade empurrou a senhora para fora do leito e exigiu que ficasse em pé. Assim Madame o fez, para aterrissar nos braços do enfermeiro Manoel. Ainda era possível o drama, a ópera. Para languidez, eram necessários olhos indulgentes. Para Manoel, Madame era quase bonita. Ele a sustentou a sorrir, levou-a ao colo à casa de banho. Contou a ela que havia flamenco na praia, que seria bom sair, tomar sol.


 

vida, isto ou aquilo, um braço de mar, uma quilha, um leme, uma arfagem, um soçobrar, uma vela latina, um doce de ovos, um licor, saudade.

 


O  mar, este amante fadista. Se havia algo de que José Gaetano não tinha medo era do mar. Amava o mar, se dera ao mar. Eu já disse, ponderou Madame em seu caderno de espiral branca, toda vez que este homem avisou que amava, perdeu. Um tempo, José pensou em não falar mais do assunto. O silêncio lhe custava, queria versos de doar. O bucaneiro ainda se alimentava de deslumbramentos e lembranças inventadas. Trabalhava, no papel, em prol de virtudes efêmeras, codificadas em metáforas, ele mesmo não as possuía. O amor grande, a ternura, não os conhecia objetivamente, talvez fosse preciso ensinar que este era o melhor amor. Amava um amor de gozo com as ondas bravias. As ironias do destino, deixava-as a outros marujos, ou aos bailaores.


O mar, este amante flamenco. O sabor de sal, o véu da bruma, o aroma amoníaco, o caudal, quantas linhas escritas apenas com uma maré. Vigo. O mar lhe inspirava dores sem matiz. José Gaetano as dedicava, às vezes com soberba, a plantas, insetos, o fundo, o horizonte, tudo o que se movesse ou parasse, espiralasse. Assim, evitava dar de cara com o nada que enxergava. O mar Egeu. Luz, sombra, impasse, tudo virava gozo, súplica d’ele. O que sabia José da alegria? A alegria era Alois Donis, ele pensava. Atóis de coral na Arábia. Se José era triste, Mar Vermelho. Alois era regozijo, sem espalhafato. Mar de Aral. Era olhar o Donis e ficar alegre, como se o sol nascesse de uma hora par’outra, direto no meio dia. Mar Negro. O amor de Malta. Por que o comandante era fado? Pela mesma razão que o outro era gitano, por um toque de arte. Como se gosta de ser fado? Soleá, Bulleria? Fernando de Noronha. Mistério das almas, tempero da criação. Não se escolhe, se sente. Torres. Até que o vento sopre e enfune a vela para novos cantares. Antilhas. O que era triste, o que era alegre. Temperança. Esperança. Talvez o cantar da Sibila das últimas conversas, longas, duras, confessionais. Se aquelas vidas trouxeram comedimento a outras almas? Ambos cantavam, o canto produzia harmonia coletiva. Saudade eram vinte oceanos, era vela a encher-se de Antártida. Atol das Orcas.


Naquela manhã quente do dia cinco de maio, de flamenco e areia estava Madame, susto diante do sol, afável com seus pensamentos, recém admitida na lucidez, a sorver a fleuma das palavras no través. Contou que José havia baixado um batel ao mar, queria remar até a ilha. Então ele viu o ser marinho. Media mais que o barquinho em comprimento. Logo encostou outro, seguramente o filhote. A jubarte, cheia de manchas esbranquiçadas, tocou o casco da embarcação, um beijo leve e sem compromisso. O comandante retribuiu, acariciou a testa do filhote. Quando ele tocou a mãe, ela emitiu um sinal muito doce, hipnótico. José conversou com os dois, aconselhou, confessou, pelo tempo que durou a curiosidade da fêmea. Depois, ela esguichou e continuou a carregar seu filhote com a maré, era urgente.


Talvez sua mãe fosse soleá, cismou José. Suas tias lhe contaram, ela se ria às gargalhadas e deixava a todos ao seu lado leves. A sua mãe doía com educação. José engoliu em seco. Um único afago ou colo ou beijo, a memória guardou, bem escondidos. Os seios de Rosália. Golfo do Alasca. A mãe, a cantar cantiga em noite de chuvarada e medo. Ushuaia. Legou ao filho mistérios, contos de morte, enquanto apontava um cometa na madrugada. A mãe que doía. Rosália, a segunda mãe, perdão.


Madame sentiu tanta saudade que tomou uma atitude drástica. Escreveu sete cartas com os dizeres eu, José Gaetano, parti da Cidade do Porto para uma viagem pelo Atlântico, à bordo da nau Sor. Arribei em Santos, Brasil, América do Sul. Esta bilha foi lançada em alto mar, no afã de encontrar o amigo Alois Donis. Ele sabe de Rosália, a segunda mãe. Favor responder, ao encontrar esta mensagem. Agradeço carinhosamente.[1]


Atirei-te uma carta ao mar, na esperança de te encontrar. Se tu vens, eu estou. Se não vens, sou fado. Eu te chamo. Já vou, pelo mundo. Eu te levo no meu coração, já que a vida não me pertence, voz da canção. 


Na Sor, havia apenas três bilhas pequenas. José as deitou ao mar, cada uma a levar uma carta. Calculou duzentas jardas entre o lançamento de uma e outra joia. Dadas as condições das bilhas, sabia que poderiam não sobreviver. Para cada bilha, cantou uma cantiga de esperança. Quando terminou de cantar à primeira, riu. A rima era pobre, os versos mais. A ternura era onda de onze metros a crescer. Para a segunda, José cantou, em árabe, as palavras brotam florinhas amarelas, um cercado grande contorna a mansarda. É verão, a terra recende a limão e sentimos tanta saudade que qualquer brisa vira canção. Para a terceira, apelou a Antônio, o arcanjo da voz, em latim clássico, cuida de nós, nobre Anjo, que às vezes nos some a poesia, a prosa. A saudade agarra, emudece. Guarda nosso silêncio, assim quieto de vento. José ponderou sobre a qualidade de suas tarefas, de compilar a rogativa, por ordem ao porão da embarcação, ele o virara de pernas para o ar, à cata das bilhas. O primaveril ato, em fins do outono real. José era chefe pai de um clã de meninos. Algo não se encaixava, era lícito fazer-se exemplo. As três bilhas já iam longe. Aportariam em algum quadrante, se tivessem sorte. Talvez, em essas ilhas onde não vai ninguém. O coração do marujo era um pedaço de desgarrada, sua função na vida andava comprometida.


Desses poucos amores de balcão de estalagem que viveu, Madame recordava um, eclipse ao meio dia. Jovem, cabelos encaracolados, um cavanhaque mal posto. Quando o conheceu, ele usava um fato azul marinho que o destacava na paisagem. Bem depois, ao deparar-se com ele na Augusta, cabeça raspada a máquina três, mesmo cavanhaque, chorou. Com este menino moço, Madame sonhou pela primeira vez piões e pandorgas, histórias curtas de casar, contos de ninar gente grande. Freguês habitual na Roseira, lunedi a venerdi.  Madame ouviu poesia junto dele, criou um orvalho de palhaços, passou dois anos a  idealizar alma gêmea. Dezenove translações tinha ela na ocasião, sob a supervisão da mãe e das irmãs. Tola. Tempos de andar pela Garret a tagarelar, a trocar impressões, luares, suspirar por um dia comum ou feriado, sorrir porque o sorriso e a cara do outro eram bonitos. O jeito desengonçado do rapaz, clown ou poeta, a coreografar a adultez. Até o dia em que disseram a Madame, três alcoviteiras, que o casal não teria futuros. Outra vez aquela conversa dramática, que corroía, amaldiçoava, cobrava tributo. Os cabelos encaracolados do rapaz foram dar guarida a outras mãos. Era melhor deixar ir. Rosália ainda guardava o livro que ele lhe dera, fabricado nas prensas da feira no Rossio. Como tudo o que segue adiante, um belo dia cada um foi para o seu lado sem adeus. Sobrou o balcão da Roseira, em geral a cheirar óleo de peroba. Desse namoro inventado, dobrado e amarelecido, um pergaminho com garatuja, nasceram histórias de invariância, vida afora. Mar de Cebeles. Saudades da alma, girassóis, dos deuses e dos cabelos encaracolados que passaram. 


Como a casa dos grumetes era mesmo a Sor, em algumas ocasiões um ou outro falava a José dos parentes, dos amores deixados em terra. Difícil avaliar o que cada marinheiro enfrentava nas viagens, que duravam quase todos os dias de um ano. Melhor era pensar que estavam na jornada como voluntários, ou aventureiros. Livres, contentados com a lavra. Às vezes, os meninotes arrolavam o número de árvores em suas supostas propriedades, um pé de amoras pretas, uma acácia, um salgueiro, um alqueire de olivais, um roseiral, uma parreira, dálias, margaridas, uma cerejeira, hortênsias, crisântemos, tulipas, lírios roxos, uma horta. O jeito como o pai e o avô fabricavam os vinhos. Uns falavam em sobreiro, pinheiro bravo, pinheiro manso. Outros vinham com limoeiro, pereira, tâmaras, castanhas. Outros ainda se emocionavam a lembrar cães, pássaros, gatos, cabras, garnisés, raposas, irmãos menores. Adeus. Renúncia. Abandono. Mar Adriático.


Noite estrelada, sem lua. Estavam bem próximos da costa, já se via o Terminal de Leixões. Foi nessa hora, todos no convés, mar serenado, que mestre Maden falou em deuses. Que os gatos eram desse tipo e ele deixara um para trás na quinta, uma fêmea. Uma albina a quem chamou Princesa Zur, por conta dos olhos azuis dela. Ele saíra à soleira da porta, a picar fumo e enrolar um cigarrinho quando a viu, esticada numa moita. Pensou que estivesse morta. Chamou-a várias vezes com chameguinhos. Só algum tempo depois ela ergueu um pouco a cabeça. Maden entendeu que o bichinho estava a passar mal. Era inverno e à noite ventava bastante. Ele a atraiu com pedacinhos de um guisado que sobrara à caçarola. Fez para ela uma caixa com palha e a protegeu como foi possível. Ao sair mais tarde, a ver se ela estava abrigada, encontrou um pequeno filhote, ela dera à luz. A gata estava deitada, um pouco alheia e Maden a pegou com cuidado, aconchegou-a ao ser que mais se assemelhava a um rato, mourisquito. Ela deixou-se ficar, o pequeno não reagiu ao contato com a mãe. Pela manhã a gata estava, o filhote não. Não havia sangue ou algo que indicasse que ela o comera. Mesmo à compreensão de que isso é lei natural, por alguma razão mães gato devoram suas crias, a narrativa provocou dor aguda no peito de todos. Maden foi contando, a gata acabou admitida na casa, fez parte da rotina, foi cuidada com respeito e liberdade por dois anos e meio. Zur, vez por outra, trazia ratazanas sem a cabeça para presentear os moradores da herdade. Era um deusnosacuda. Deitava-se ao pé do catre de Maden, encolhidinha e econômica. Às vezes, era no degrau de fumar que ficava, ao lado do seu senhor. Maden sabia que era isso porque ela esfregava a orelha que tinha em sua perna. Raramente ela vinha ao colo ou aceitava dengos, foi se afeiçoando e ficando. Mesmo arredia, era fácil amá-la, seu olhar era o paraíso e seu miado um chuvisco de verão. Ela já chegara com o ferimento na orelha, comum em gatos albinos. O dito agravou-se, mioma, obrigou ao Maden amputar. Mesmo mutilada, a gata continuava doce na sua ranzinzice. Quando Açucena deixou Maden daquele jeito, ele ficou fora de casa por meses antes de embarcar na primeira viagem. A gata ficou por conta e risco, faleceu. Ao fazer uma pausa, Maden chorou como um menino. Não há como dar peso a essas dores, essas atrocidades de homem, não há como reparar a situação, mesmo em sabendo que os gatos são deuses.


Por que as pessoas andam? Será que elas tem mesmo aonde ir? Madame, naquele final do caderno de espiral branca, sentiu a saudade como uma fisgada de corte no peito, daquelas a queima roupa, quando o caminhar é a esmo, um sobressalto. Chegou a arcar-se e vergar para o madeirame, vencida. Fazia frio e o sol se escondera durante todo tempo. As lides de cozinha a convocaram, tivera altercações com o enfermeiro Gaspare, errara no sal, perturbou-se além do previsto. 


A dor incendiou o coração de Madame, calou tudo. Os ouvidos deixaram o barulho das ondas relegado ao mar, o contorno das coisas esvaneceu. O espaço abismal tomou conta da percepção, luzes em vários túneis. Mar Cáspio. O sorriso vinha, lembrança funda, a socorrer aquela alma vulnerável. As vozes a exortavam a reagir, a não delegar qualquer poder a outrem, mesmo este a se apresentar como amor. A mão amiga de Esperança tornou a pousar, etérea, em seu ombro. Uma tênue calma se fez sentir. O mal estar foi cedendo, a saudade não. Alguém mais sentia isso, perguntou-se? Alguém mais sentia tanto? Deixou que o arroubo ganhasse todas as asas que quisesse, sem chorar. Se tinha que passar por tal experiência, que ela fosse toda e partisse, como viera. Com educação. Vinte minutos transcorreram e o corpo permanecia encostado à bancada dos legumes cortados, como se cochilasse. Escurecia. A enfermagem ia e vinha, sons de crianças a gritar comandas, as rações iam sendo distribuídas. 


Foi apenas angústia, atendida prontamente pela enfermeira Catarina, que lhe ministrou dose baixa de paroxetina. Notou Madame rendida e mediu, o surto era leve. O quadro se assemelhava a uma nau a sofrer abordagem pirata. A enfermeira titubeou, se após a medicação era conveniente uma aproximação para toque ou ficar longe. Ficou longe, que o que se deu com Mamã era algo, Catarina conhecia, ia passar sem sequelas. Como se alguém sacudisse a senhora pelos ombros. A moça quase careca deixou, porém ficou, a velar. Fez que cozinhava. A primeira estrela apontou no céu. Um girassol da noite, cabisbaixo e silencioso, iluminou a azulejaria. 


Tem coisas que uma mulher não pode confidenciar, não se justificam no cotidiano, tampouco se aplicam a altiplanos, porque lá todos são saciados. Um instante de salto, coisa lá dos elétrons, ou uma corrente elétrica fulminante, um instante de lona e gongo. Assim foi o princípio de enfarte de Madame. Difícil, solitário. Não há receptor, transmissor nem mensagem nem verso que se escreva a respeito. Mamã sabia de outras velhas sozinhas na vida, ninguém era só. Doía. Passados quarenta minutos, Catarina achou de conduzir Mamã à enfermaria. O senhor da Nossa Senhora, de tocaia. Doutor Itaú executou os procedimentos adequados, sossegou Catarina e ligou o rádio sem alarde, cantava Nesrine[2]. Os sinais de Madame estavam estáveis, ela dormiu.


O menino Júlio, todos sabiam, era um bom garoto. Adorava aquela Mamã. Admirava, dela, os escritos mais lindos que ele já lera. Ficou ali, no corredor da enfermaria, como quem não está. Júlio tinha no bolso bolinhas de búrica[3]. Em silêncio, como um garoto de quinze anos pode estar, começou a retirar uma, duas três bolinhas de vidro. Iria fazer a constelação no chão, porém o doutor o convidou a entrar. O rapazito usou a mesinha de café e pôs um céu em órbita diante da senhora. Tomou de outro bolso um cavaco de mogno, no formato de um barco. Acrescentou à maquete improvisada. Estava suficientemente perto e longe, para cantarolar sem ferir. E foi a Barcarola que ele murmurou. A vogar, a vogar[4]Madame retornou do sono, de manso e manso. Sorriu para seu amigo Júlio, acenou com a mão livre do soro. O rapaz aproximou primeiro o olhar, gigante, depois o corpo esguio, desmamado no tempo regulamentar, mar de rosa e de jasmim. Encaixou a cabeça sob a asa de Mamã, que cheirava a velho, maresia, chuva, abrigo, solidão e sal, aroma que trescala. E ficaram assim, a janela a lhes servir de coberta. Ó, brisa do alto mar, neste céu cor de opala. 


O senhor da Nossa Senhora, do lado oposto, junto ao braço espetado, torcia nova gramínea.  Catarina tornou à cena bem depois, com uma tigela de caldo e três colheres. Ó brisa do alto mar, vinde nos embalar. Tinha bolachas duras no avental, estendeu uma a Júlio e outra ao velhinho. Ficou à cabeceira de Mamã e ganhou, também ela, abrigo embaixo da asa dorida. A vogar. A vogar. A nau embalava, lenta, aquele arremedo de família. 


Mais tarde, sobre a mesinha, o caderno de espiral branca aberto, lia-se um trecho avulso da história de José Gaetano. Carvalho, o madeirame do guarda-roupa daquela pousada no Algarve. A mesa era também de carvalho e José revia, ao pé d’ela, sobre um tapete de heráldica, as notas da última travessia: o deserto e o mar acenam com as mesmas areias. Argila fina, dança sob a maré. Pássaros de madeira. Vestidos de franja azul. O bolo de noiva com glacê verde. Céu de nuvens sopradas em bocados. Azul e morno, como os dias de casar devem ser. José acariciou o chifre do rinoceronte bordado no tapete. Silêncio, os músicos faltaram. O sol da tarde. Os mares do sul. A jovem estalajadeira, as pétalas de papel, o brinco. Ele subiu ao mirante, não se podia ir lá. 


As bolhas de sabão e tu, que posaste incógnito para tantos versos, sorriso amarelo de uma posta restante qualquer. 

 

Aquele homem estivera na vida de Rosália por seis anos. Foi assim: ela cantava no coro da Igreja de Santo Antônio, na Freguesia de Santa Maria Maior, no concelho de Lisboa. No programa, uma missa do Padre José Maurício e textos de Gil Vicente. Era dia de Antônio e a congregação ocupava todos os bancos. Aquele senhor grisalho, corte rente ao couro, lábios bojudos, nem alto nem baixo, elegante, da voz grave, olhar cínico e modos gentis, um molejo desgovernado nos quadris chamou-lhe a atenção. O sacerdote havia solicitado à paroquiana que escolhesse, entre a congregação, gente para recompor o coro. Este João Vida foi o primeiro a ser chamado. Já dissemos que a percepção de Rosa é praticamente ingênua nas relações amicais e que se mete logo a paixões tíbias. Não que tivessem tido algo maior que algumas tardes a cantar e rir, nada além de camaradagem entre coristas e só, das que duram enquanto dura um ensaio e olhe-se lá. Para Rosa, era um idílio enfarado porque unilateral, que ela então fez durar seis anos. Ela era assim, de transformar coisas pueris em grandes acontecimentos, melhores que nada, perdoem. Extrapolou, neste caso. Sonhou, outra vez, casamento com o João, algo fora da ordem do senhor. Rosa pediu, após seis anos de convívio, uma vez na semana, a mão de’l, em pleno Convento dos Jerónimos sem, todavia, apresentar um anel ou qualquer partilha que tocasse o coração daquele sujeito. O João Vida arreganhou os dentes em ruidosa gargalhada, chovia de correr riacho ao canto da Gadelha. Apesar da sardonice, era da natureza do homem ser gentil. A mulher sairia encharcada daquela humilhante situação e então ele a resguardou, filhademaria, sob o guarda-chuva xadrez. Ainda roçou-lhe a barba macia no rosto o senhor, à despedida. Por esta bagatela, Rosália persistiu no sonho por mais uns dias. O Tejo levou.


Madame, ainda a convalescer do susto de parar seu coração, deu-se conta de que narrara dois amores seus naquele juntado de notícias do caderno de espiral branca. Deixou-os na conta de Rosália. Esta, não teve alternativa, arrematou, senão engolir a altivez e dizer ao pároco que não mais faria parte do Coro da Santo Antônio. Fez a comunicação em confissão. O capelão a enxovalhou com leis morais e demônios da inquisição, que tudo tinha que estar no lugar certo e a mulher, além de desarrumar tudo, punha a reputação do coro em questão, e isso era razão lá d’el, qualquer culpa que lhe cabia, entornada sobre ela. Por luz ou destino, o João Vida acusou enfermidade e quase partiu desta vida por três vezes. Afastou-se ele do coro, ofendido. A vocação de Rosália seguiu, mesmo que abalada. Mar de Banda.


José Gaetano ia rezar à Santo Antônio após a seara no mar, em especial por ocasião da Navidad ou da Ressurreição. Lembrou-se da sóbria igreja, do austero coro, enquanto passava o mata borrão em seu último verso. Foi lá que conheceu as três irmãs, Rosália entre elas. Nada a fazer, senão dobrar seus papéis e sentir o cheiro bom do carvalho do armário, feito de árvore que racha sem quebrar, boa de cavoucar. Já não chamavam o comandante de qualira, seu amadurecimento teve muitos contornos, amansados nas páginas do diário de bordo, misturados, numa tentativa de preservar identidades. Ambos, Rosália e José, limitaram-se a navegações na Roseira, iludidos os dois. Construíram atalhos pouco eficientes no convívio, assim estacional. E agora, José? Por onde andaria a Rosa? Em final de maio, Donis esteve com ele uma última vez, peculiar contato, depois de um decênio sem notícias. 


Madame não apreciou a confusão dos últimos parágrafos que compôs, deixou-os. Poderiam ser subtraídos depois. Não foram. Refeita em parte do enfarte, a senhora foi levada ao dormitório. Estava naquele ponto da jornada em que seria melhor o aconchego do próprio lar, acolhida pela família nuclear. Sabedor das limitações de todos naquele Casaredo, o doutor Itaú fez-se de filho, deu-lhe o afeto que tinha, antes do sono chegar. Contou-lhe a história de Tupi-Guarani Nhandeva. Itaú não podia precisar as origens de sua bisavó paterna, em que mar ou mundo ela vivera. Sem este elo, sua jornada vagava a esmo, sem respostas.  Talvez, se fosse achar o pai, a quem não via a exatos trinta e seis anos, e lhe perguntasse. Se não, jamais saberia. Talvez o homem que ele queria esquecer soubesse do sangue tupi da avó. Arani, tempo furioso, bocarra aberta, engoliu histórias inconclusas de sua estirpe, do clã, dos prismas não convergentes, reticentes, pagãos e crentes. Os portugueses e os tupi-guarani, quem poderia saber, se possuíam histórias escritas na areia? O que o doutor queria mesmo contar era sobre um índio, que carregava a sua amada às costas, dentro de um balaio, que a moça fora atingida por um dardo envenenado e pesou que pesou que pesou. O índio não quis viver sem seu amor, cavou um buraco e ficaram de pé os dois, abraçados. Dali nasceu um pé de lisianto roxo. A vida humana permanece imutável, inesgotável, foi contando Itaú. As faces das pessoas é que somem. É assim e quem quiser que conte outra. É bom, sempre, para sossego dos amantes, lembrar que não há garantias no amor. Amor, palavra que leva o Universo às costas. 

 




[1] Há um exemplo de uma carta entregue dessa forma, em Dez anos no mar. Família Schümann. Rio de Janeiro : Record, 1995.

[2] Artista e cantora norte-africana

[3] Jogo com pequenas bolas de vidro, para jogar em piso de terra, com o auxílio do polegar e indicador.

[4] Contos de Hoffmman, Offenbach, excertos, tradução livre.

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