Hospital Casaredo 21

 



Espera



Chegou a vez de Matilde e Alev saírem para o recesso. Matilde digladiava com uma paixão não correspondida e estava obstinada a caçar o que não lhe pertencia. Maria a orientara energicamente a resignar-se. Explicou que a moça não conseguiria frenar os sentimentos que nutria por Javier, que era preciso ir ao fundo deles, reconhece-los, antes que se tornassem perniciosos. Era imprescindível aceitar as frustrações e então encontrar um lugar íntimo, pra proceder a diluição. Alguns não conseguiam completar o processo, Maria consolou, contaminavam-se. Apontou as senhoras, em seus esgares. Completou as falas dizendo que outras forças de atração ocorreriam, mais sadias, mais intensas. Era preciso aprender a construir diques e esperar. Se não houvesse outra solução que permanecer sozinha, ela não seria a primeira e não era, de forma alguma,  o fim do mundo. Matilde ainda não recuperara totalmente a razão, seguia seu instinto de caçador. A enfermeira chefe perguntou o que representava, para Matilde, trabalhar na equipe. Com se tivesse recebido um tabefe, a moça chegou a sentar-se, quase desperta. Deu-se conta de que perderia o respeito profissional, que não obteria boa avaliação ou carta de recomendação para outra instituição, caso insistisse em ultrapassar os limites. Ainda não tinha um método próprio de trabalho na enfermagem. Estava aquém do desempenho observado entre os colegas. Admirava o trabalho de Maria, contudo não tinha aptidão para maternar. Joana, para Matilde, era uma entidade das águas. Gaspare, um homem como poucos. Manoel, na linha dos avós. Alev, misterioso, discreto, como gostaria de conhecer suas técnicas silenciosas. A moça carecia de um instrumento de ação e não era por vaidade, porém por verdadeira misericórdia pelos enfermos. Ela já presenciara a técnica do eletrochoque, por imposição do hospital, abominava aquele tratamento desumano. Quase fora demitida por não aceitar participar da segunda sessão. Quando retornasse das férias, haveria mudanças, a enfermeira sabia. Queria ficar na equipe, crescer. Sair para espairecer naquele momento se revelava uma benção, afinal, um tempo de preparação de que Matilde necessitava. Prometeu a Maria tomar rumo. A enfermeira chefe se manteve imparcial. Sabia, também ela, o quanto era desafiador lidar com um capricho. 

 

Alev faria falta. Era o homem invisível da confraria. Conseguia tudo de que todos precisavam, pacientes e profissionais. Fora ele quem levantara a documentação do casarão para o doutor, além de obter nomes, endereços, contatos. Sua cor um tanto amarelada no último mês havia chamado a atenção de Maria. O enfermeiro confessara sentir a boca amarga, algum enjoo. Maria lhe deu o endereço de um especialista em aparelho digestório na cidade de Coimbra e ofereceu ajuda financeira para passagem, estadia e consulta. O rapaz aceitou parte da soma, prometendo pagar-lhe assim que possível. Maria sabia que ele o faria, insistiu na quantia total. Alev respirou aliviado. Era um belo homem, ainda mais interessante que Javier. Entretanto, ao invés de atrair distanciava, causava pânico. Maria desejou que ele voltasse curado.

 

Catarina revelou-se poderosa colaboradora. A enfermeira era eficaz para os reparos que se pode precisar em uma casa,  impecável na cozinha, produzia gostosuras com quase nada de ingredientes. A sopa que preparava, até o mais atoleimado dos pacientes sorvia com gosto.  Ágil, alegre, vivia a cantar canções ucranianas. Quando Madame a ouviu pela primeira vez, chorou muito. Catarina cantava Lembra-te sempre de mim[1] e algo acordou, direto no coração da senhora, que sentou-se na cama, a soluçar. Pediu água um pouco depois, com voz grave e clara. Era a primeira vez que falava na Assistência.

 

Maria, que atendia a senhora Quatro naquele momento, aproximou-se de Madame, riso na face. Maria, Madame chamou, ainda a chorar, Maria. A enfermeira chefe a acolheu, pelos cinco minutos de praxe, reforçou o tema, junto com Catarina. Depois dos tapinhas de despedida, Madame  serenou, sorriu, aceitou que lhe enxugassem os olhos, abraçou-se ao caderno e dormiu. Na vizinhança, mais mulheres choravam. Uma a uma, Maria as ninou. Catarina foi atrás, a cantar novas cantigas oportunas. Quando os leitos aquietaram, Madame remexeu-se. O caderno caiu. Catarina chegou de manso, devolveu-o e a senhora, sem saber se seria proveitoso, o abriu. A nova enfermeira já a vira escrever, entendeu o que desejava. Arrumou o travesseiro e estendeu-lhe o lápis, esquecido sob o leito. Madame verbalizou um agradecida e mergulhou na narrativa. 


(...)
Serão charcos de luz
Envelhecida;
Rasos, todos os montes
Deixarão prolongar os horizontes
Até onde se extinga a cor da vida.

Por isso, é devagar que se aproxima
Da bem-aventurança.
É lentamente que o rabelo avança
Debaixo dos seus pés de marinheiro.
E cada hora a mais que gasta no caminho


É um sorvo a mais de cheiro
A terra e a rosmaninho! Miguel Torga


Na falta de algum sentido para seu pesar, José Gaetano cantou o fado de Mario Redondo. A voz se perdeu, no mar aberto, e o homem pôs-se a chorar. Estava a sentir relentos, largado por si próprio. Para agravar o quadro, o comandante sacou de seu alforje um livro, onde leu a prece à Capela Galafura, ilustração feita à mão, azulejaria  do lugar.  José puxou à memória outro tomo do mesmo autor, diário não de bordo, mas de terra, sessenta anos do mundo, sob o prisma de um poeta. Ao contrário de esmorecer, José sentiu-se consolado, era bom escutar palavras gentis através dos livros. Sentiu urgência em emancipar-se da infância, já ia cansado dela. Enxugou os olhos e observou a paisagem. Lá embaixo, no convés, a marujada dava conta dos cotidianos, como tem de ser. José anotou as ações utilitárias, os trejeitos, os cacos de diálogo. Era seu ambiente, acalmava, renderia bons contos. O exercício remeteu a cantar desnudo. José Gaetano adormeceu por instantes, debruçado sobre a beira da gávea, as páginas do livro sob seu cotovelo. Sonhou com a Rosa em madrugada de vento, ondas a jogar a nau contra a costa. Ele não entendeu, ou não quis, os símbolos que o sonho trazia. Rosa andava pela praia, olhava sem olhar, descalça, vestida de camisolão, desgrenhada, muito magra, olheiras profundas, uma assombração. José despertou, como que delatado. O dia não lhe renderia vintém, caso continuasse a vadear.

‘Consente que eu aspire esse perfume raro,
Que exalas da cabeça erguida com fulgor,
Perfume que estonteia um milionário avaro
E faz morrer de febre um pobre sonhador.’
 Cesário Verde                         

É trabalho de notário, registrar a travessia por mar ou por terra. O bucaneiro acumulava esta função. Não se fiem em preguiças ou mariquices os que até aqui chegaram com a leitura. As lides, a messe, para José Gaetano começavam logo que o dia se dava à luz. Assim iniciava seu inventário. Cada quilha, cadaste, gio, roda de proa, baliza mestra, plão, cada fasquia de madeira eram cuidadosamente investigados. A Sor não se assemelhava a barco algum, tinha suas próprias cavernas, entalhes caprichosos, só o mestre de ribeira a conhecia. Tampouco José Gaetano tinha a nau em acolhimento perfeito. Descobria sua potência a cada roçar de onda, a cada balanço. A nau exigia cuidado, presteza nos reparos, a fim de não desequilibrar e por em risco toda tripulação. A Sor era a musa de José, sua casa, sua esperança. Na Sor, ele suportava todo discurso da vida, todo aconselhamento que a jornada suscitava, mesmo que ele seguisse a teimar. O comandante aprendia, no embalo das ondas, a conter os desejos. Tarefa pesada, compunha os fios brancos de sua barba. Na barca, José podia raciocinar. Se alguém se interessava por seus discursos, respondia quero viver, do fundo da alma, com todo respeito. Se perdia a linha, punha a culpa no cais. As obstinações iam sempre com o homem, em tudo o que fazia. A Rosa? O Alois? A primeira extraviara às margens do Tejo. O segundo, bem, o segundo era para outra alma. José Gaetano dera motivo a gente alguma para ciúmes, tinha segurança a respeito disso. Há muitas jardas Rosa deteriorava, talvez por ter, um dia, compartilhado com ele o leito. A imaginação do marujo alcançou os dois amores, sem aviso. O corsário previa perigo. Atravessariam tsunami - dos que devastam aldeias inteiras, confiscam almas e histórias. O que daria, para estar com um deles. No último sarau, Alois Donis dera a entender que bastava. O rapaz, cordial, pediu a José que o deixasse em paz. O comandante escutava, a todo momento, a voz interna a lhe chamar que buscais, que buscais, que buscais? Rosa voltava à memória sempre ao final da tarde, hora e que ele batera porta e a abandonara, grávida. 



[1] Composição de Mario Redondo

 

 

 

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