Hospital Casaredo 20





Medidas iniciais


Naquele dia de março, às portas da primavera, a enfermeira chefe Maria reuniu os atendentes, todos extenuados. Havia neles algo angélico, porém a necessidade de mudar de ares era vibrante. O doutor Wong Lam desejava elaborar uma escala de folgas. Aos pares, por quinze dias, ofertas de descanso merecido; um bônus em dinheiro, doado pelo doutor, para garantir conforto e tranquilidade, além de um dia a mais para o último que saísse. São muitos dias de afastamento alguns disseram, não temos substitutos. Catarina  inscreveu-se para estagiar na Assistência, objetou Matilde. 


Wong Lam estava imerso nas questões do casarão, preocupado e otimista; precisava dos dois meses que compreenderiam as folgas e de um grupo enérgico nas ações que viriam a seguir. Os atendentes comentavam que o prédio almejado estava em vias de ir a leilão, que seria necessária uma fortuna para adquiri-lo. Alguns falavam em mecenas, mencionavam possíveis celebridades a colaborar, mesmo que às custas de seus próprios interesses.


Um sorteio seria forma lúdica para montar a escala, contudo aclamaram Gaspare para ser o primeiro a desfrutar do repouso, que ele andava por um fio. Javier, o segundo; ele não via o filho há tempos. E assim começou a pequena jornada de férias. No caso de Gaspare e Javier, um não tinha para onde ir, o outro lhe ofereceu um quarto nos fundos de casa, na Ribeira do Cavalo. 


As providências burocráticas para aquisição da nova sede da Assistência grassavam, sem tropeços. Localização privilegiada, boas instalações. A documentação previa várias exigências difíceis de cumpri e manter. Calculava-se hum mil, trezentos e quatro euros por metro quadrado. A área construída era de seis mil e trezentos metros, mais bosque e praia particular, um pouco mais de quinze mil metros no total. A vistoria precisa atestava não serem necessárias reformas estruturais no momento, ou de hidráulica e elétrica. O tratamento sanitário era pioneiro na região. Impostos em ordem, taxas quitadas. Havia dois anos, o imóvel fora embargado. Três leilões no período não contemplaram compradores. De posse de dossiê detalhado, o doutor dirigiu-se ao departamento de imóveis da Cidade do Porto. Foi encaminhado à Desembargadora Luariz Sezna. Negociaram os dois, mais um advogado, durante três horas e dez minutos, minúcias. Ao sair do gabinete da desembargadora, um discreto sorriso iluminava a face sempre misteriosa de Wong Lam. Ele não imaginava uma parceira na senhora Sezna, o que foi bastante animador. Encontrar pessoa tão bem intenciona, a ocupar cargo de peso, não era comum. Até que o pessoal da Assistência retornasse do recesso, o doutor teria resolvido as questões preliminares da aquisição do imóvel. 


Para encantar a imaginação dos atendentes, correu à boca pequena que o casarão pertencia a uma senhora Antária Santana, residente em uma hospedaria de Lisboa. Gaspare pareceu despertar de um sono sem sonhos quando soube: as anotações de Madame reportavam a esta personagem.


À Cidade do Porto, devolver vida ao casarão fechado significava destaque, espaço midiático expandido, turismo; um empreendimento assistencial de vulto, com apoio de várias organizações, incluindo-se Estado, Famílias, Mercado e Terceiro Setor. O projeto foi batizado Hospital Casaredo. Wong Chang, por sua vez, teria no movimento a oportunidade de reunir a família desfeita. 


As vozes, que sobem do interior do doméstico,

Cantam sempre, sem dúvida.

Sim, devem cantar.

Quando há festa cá fora, há festa lá dentro.

Assim tem que ser onde tudo se ajusta —

O homem à Natureza, porque a cidade é Natureza.

Que grande felicidade não ser eu! Álvaro de Campos

 

O rodízio na Assistência seguiu seu curso. Desejos de sucesso, bom retorno, cumprimentos e que se comportassem, com o apreço de toda  equipe. Gaspare e Javier possuíam méritos. Além da competência no servir, foram os primeiros enfermeiros a adotarem aquele setor dos idosos dementes como prioridade em suas vidas, há cinco anos andavam lado a lado pelos corredores. Corretos, justos, afáveis, sempre prontos. Muito socorro, muito susto viveram juntos. Poucas vezes se ausentaram do sanatório, Gaspare menos que Javier. Este saiu para se casar, há ano e meio, e logo retornou. Ao contrário do que se pode supor, Gaspare não teve o coração partido com esta decisão do colega. Seus sentimentos bons por ele permaneciam, inviolados. 

 

Na Ribeira do Cavalo, os dois chegaram a uma casa simples, de antigo pescador, avô de Javier. Muito asseada, poucos objetos e móveis, flores e plantas de mar à volta. Amparo, a esposa, era bela, madrilenha de olhos e cabelos negros, discreta, envolvente. Logo se afeiçoou por Gaspare, uma irmandade colhida na dor. Agrado, a irmã da moça e Pierce Rice, seu marido, moravam provisoriamente na casa, para auxiliar com o bebê durante as longas ausências de Javier. Foi acordo harmonioso o que fizeram, surtia efeito até o momento, embora qualquer mortal pudesse sentir a tensão da espera no ar. Agrado estava prenhe, o bebê nasceria dentro de quatro meses. Javier e Amparo procuravam, há algum tempo, um apartamento na Cidade do Porto, mas a oportunidade de mudança ainda não aparecera. 

O quarto arranjado para Gaspare era maior que o do sanatório. Perfumado, arejado. A janela abria para a enseada. Havia um chuveiro do lado de fora, usado pelos moradores ao voltar do mar. O enfermeiro tomou um banho, acalmou seus desastres íntimos. Durante a viagem de trem, Javier e Gaspare combinaram não falar sobre as coisas do trabalho, a menos que Amparo insistisse. 


Júlio, filho do casal anfitrião, estava com sete meses. Criança alegre, afeita ao lugar. O pequeno se entretinha com uma frota de navios de borracha, nas cores primárias, quando o pai se aproximou. Os objetos podiam ser mordidos à exaustão e não se rompiam. Os dentinhos por nascer enervavam o menino, que às vezes choramingava, levava o brinquedo à boca e o jogava longe, para tornar a buscar, dentro de um cercadinho. Javier imitou o apito de um navio e provocou a algaravia do filho, que logo o reconheceu e estendeu os braços. O pai, com sua experiência de enfermeiro, tinha jeito com bebês. Foi logo trocar as fraldas e oferecer a papinha, ninando-o sobre os joelhos, sob o olhar terno da mãe.


Este foi o primeiro encantamento de Gaspare naquele ambiente, o bebê. Mais tarde, junto ao cercadinho, o moço chamou a atenção de Júlio. Um cumprimento festivo, como se já se conhecessem de longa data. Brincaram até o menininho ceder ao sono. O gesto de Gaspare deu tempo a Amparo para aquietar os impulsos nos braços do marido, que correspondeu às suas saudades. O casal dançou na sala com muito vagar, depois ausentou-se por algum tempo. À noite, no jantar, Agrado se chegou, beijou o cunhado nos lábios. Fez o mesmo com o novo amigo, que aceitou a dádiva de bom humor. 


Gaspare, com o passar das horas desse primeiro dia, teve tempo de observar, macerar e entender os próprios sentimentos, desejos. Acalmou-se, acautelou-se. Descobriu-se viril, disponível, atraente. Ético. Depois de noite reparadora, o sol despontava quando ele se dirigiu ao mar para um mergulho. Um grupo de estudantes gozava férias na praia e o moço distraiu-se, até flertou, o que o manteve apartado do lar de Javier por boa parte da estadia. Para Gaspare, a Ribeira foi affair sem consequências, moveu energias estagnadas e lhe devolveu consciência de si e do entorno. Nem guardou o nome do rapaz com quem esteve. Aquele trecho de mar era calmo, as ondas quebravam tranquilas, de modo a desanuviar a mente. Gaspare desligou-se, pôs o coração em ordem. O mesmo não se deu com Javier.


Apesar das brechas abertas pela experiência de viver, foram bons aqueles dias de Ribeira do Cavalo. Boa comida, boa bebida, boas conversas sobre outro assunto que saúde e demência, convívio com gente bonita, praticamente desnuda, voluptuosa. Talvez pela textura das nuvens, a inclinação dos raios de sol, o odor da água, a cor do meio da tarde, a pele crestada, os sorrisos, a proximidade, as trocas de olhar, os ruídos, as faluas, a música, Gaspare se sentia feliz. O rapaz ainda sonhava com Javier, mas tinha respeito por Amparo. E havia a criança. Melhor que alguém cedesse. Para Gaspare, lógico, prudente, foi permitir que o rio corresse. A tensão sexual foi parar nas ondas, a ternura cresceu em seu peito, abriu espaços. Tudo parecia concertado quando, ao voltar de um passeio, há um dia de irem embora, Gaspare presenciou uma discussão entre Javier e a esposa. Os dois haviam se afastado um pouco da casa e até trocaram bofetões. Gaspare só foi saber da razão do entreveiro no trem. 


Amparo queria trabalhar, trabalhar no sanatório. Queria ser camareira, cuidadora ou qualquer coisa, para não ficar mais longe do marido. Compreensível. Que tipo de união aquela, à distância? Aquelas separações constantes, demoradas, sem notícias. A moça ficava exasperada, mesmo que soubesse do trabalho estafante que o marido exercia, que sobrava tempo algum para convívio familiar. Ao se casarem, tudo parecera natural. Até o pai da moça falecer. Não foi fácil, não era fácil. Javier estava furioso, como que traído. Amparo argumentou que, se estivessem na Cidade do Porto, ele estaria mais perto da família. Dessa forma, também Agrado voltaria para a própria casa, com Pierce e seu bebê. O cunhado, pesquisador em uma fábrica de azeite, ficava imobilizado na praia. Gaspare não soube, claramente, o motivo da agitação do colega. Tratava-se de algum entrave de alma para Javier. Gaspare guardou distância, não fosse ele o pivô de uma ruptura. Como Javier fora rude também com ele, aconselhou o colega a uma sessão particular com o doutor Wong Lam. Toda desordem, mesmo dentro de certa normalidade, exigia vigilância. Para se configurar um transtorno e envolver outras pessoas, bastaria negligenciar o momento. Atenção e bons pensamentos eram indispensáveis. Por ora, Gaspare se sentia seguro em ser solteiro convicto.

"Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio afora, rio adentro — o rio." (Guimarães Rosa, A terceira margem do rio)

                                   

Seguiam as rotações, translações, marés e os peitos eloquentes das canções. Javier teve febre. Tragédias, comédias, ironias, águas duras, sarça ardente. Suspiros, Guadiana, lassidão, sopesar humano, nomes das coisas. Sepulcros, não para sempre e nem para nunca. Personagens ivans, varienkas, pedros, teresas, sebastianinas odes, o calor escaldante do meridiano, a manha, a obstinação tacanha, o passar vergonha por gostar. Dizer que não exige algum esforço. O trabalho enobrece, perde acha e torna a perder. A pequenez do sentir canta de dor, como um afago. Canto sem cantar. Os mitos e as bacantes dançam em determinado jardim. Um giro solitário, uma mandala de luz. Javier foi curar-se ao lado de Madame, dois dias após assumir suas tarefas na Assistência. Diante do mar, ao olhar o esforço da senhora em comunicar-se, clarear a própria estadia na Terra, o enfermeiro amainou a dor e assumiu certa lucidez. Javier não sabia expressar suas aflições. Afinal, ele tinha um filho e isso era tudo. Madame olhou para ele durante algum tempo. Dava a entender que vibrava suas dúvidas. A mão sobre o pulso era indicativo de comunhão. Um gesto novo, que lembrava sacudir, fez Xavier compreender vai passar, meu filho, vai passar. Madame soltou-se do rapaz, pegou o lápis, pôs a ponta entre os lábios e então escreveu.

No camarim improvisado, José Gaetano teve dificuldades em respirar. Cantar era a última coisa que queria fazer. Diante da coletividade, expor-se era um absurdo. Alguns minutos a sós e quase não se reconheceu. Com os sentidos baralhados, pretendia-se imune a maresias, evitava desalmar-se. Era um surto, antes da cena, um perigo. Ciúme nefasto. Se timoneiro estivesse, posaria sobre o mastaréu e de lá não mais sairia. Queria se sentir seguro. Queria lutar guerra alguma, menos ter Medeia em seu encalço, ou urtigas-do-mar nas ceroulas ou ver-se ao espelho. Ridículo, era assim que se achava, ridículo. O brilho dos olhos nos olhos numa noite de chuva, outubro surubim, pura ilusão e desvio do objetivo musical. Não haveria, para José, tempo de refazer-se. Foi ao palco. Dois rios se tocaram as margens e a injunção moveu loto no aluvião. A nova sessão de música esteve morna. Desta vez aconteceu no Ouro Verde, Lisboa. José, sempre obstinado e ambíguo. Naquela noite em que não sentiu a soirée, o marujo deixou de jantar, engoliu a posta como se fora a última. Sofreu um naufrágio dentro e insistiu em se manter agarrado ao talho de casco que sobrou. Uma pena, uma afeição desastrada. Sem fármacos, impossível sair do trauma ileso, não havia canção para afagar. Compassivo, ainda pode anotar a receita do bacalhau mais tarde, em seu diário de bordo. Quando saiu à fresca, concluída a récita, José olhou os casarios à volta. Um plátano bastardo acolhia aquele banco onde se sentou. Permitia quebra-sol durante o dia. À noite, fazia as vezes de capa enegrecida. Vento sul, aos poucos o comandante caiu em si. É uma energia maior, que dá, tira, aperta, empurra, soca, alisa, espreme, sacode, acoca, espanca, define, apaga a lousa, reprime ou obriga a, liquida, liberta, agarra pelo colarinho, branqueia o cabelo, torna a espremer, fisga, insufla, refaz, destrói. Tira, antes de o homem tirar-se. Suspeita, sabe nada do existir. A consciência, contudo, mantém-se vigilante. O mistério é para aquele que não quer ver. O mar é para quem sabe chorar. A massa de chuva chicoteia do céu e o mundo verdece. E ai daquele que dissesse que o sentir era incoerente. O corsário viajaria naquela manhã recém tinta. A Sor o recebeu indiferente, como que traída. José delegou função a seus comandados. Nos sonhos do primeiro dia sobre o mar, o barco afundou. Ser músico não parecia a melhor ocupação para José Gaetano.


Houve o dia de o comandante contradizer a opinião do outro, o capitão-mor. Talvez algum ato desrespeitoso, não soube medir, os surtos andavam menos espaçados. Alois chegou a arredar o braço de um afago. Tal gesto representou, para José, o momento tão temido de um desenlace. Finalmente a amizade musical terminara, se é que existiu começo. Foi como deixar cair uma molheira ou poncheira em piso branco. Ou um balde, cheio até a borda com alvejante, sobre tapete persa.


A quilômetros dali, no mesmo período, o primeiro ano do Cristino foi marcado por febres e desarranjos. Dez dias grudada ao berço, Rosalia temia que o menino não respirasse. Sacudia o gradil a todo instante. Não aceitava toma-lo nos braços. A criança deve ter revivido tormentas ao mar, trovões e raios, posto que a mãe não parava de assusta-la com seus gritinhos apavorados e lágrimas sem controle. Assim que nasceu, o bebê foi parar no colo de Antária, a irmã mais nova de Rosa. Naquele consolo, Cristino experimentou sossego. Antária, por afeiçoar-se ao menino, mudou o trato com Rosa, apartando-a do fel de Yva, a dona da estalagem e do desprezo de Deolinda, irmã mais velha. Instalou Rosa no mirante, de onde se via o Tejo por sobre os telhados da Alfama. Foi ali que Rosa se desligou de vez, a olhar através dos barcos. 

 

Quinze dias após do nascimento de Cristino, sem agruras, a criança dependeu exclusivamente de Antária, que lhe dedicou todo o tempo. Rosa guardou leito e esqueceu-se. Tempo passou, Crisinho completou seis meses e Rosa seguia, alheia ao entorno. Em uma de suas crises sonambúlicas, a mãe biológica de Cristino, sem leite, fugiu de vez. Fado leve para Antária no começo, alívio. Ao menos, Deolinda ocupou-se da velha Yva, que faleceu pouco depois da fuga de Rosa. A avó recusara-se a tocar o neto, nem olhou para ele. Deslocada, entediada com tanto ódio, Deolinda acabou por reaproxima-se de Antária. Tanto sofrimento a abalou e a impeliu a ajudar com socorros também para o menino. Quase não havia mais fregueses na Roseira e a família começou a passar por necessidades de todo tipo. Foi quando chegou Silvério Leirias. Ardiloso, não tardou que tomasse conta dos negócios e amealhasse os bens às irmãs. Tratava as duas como escravas. Uma epidemia agravou as circunstâncias naquele sítio. Levou Deolinda. De Rosa, somente se escutavam rumores. Acreditavam que a mulher vagava sem rumo, assombrava as praias do entorno vestida com um camisolão. Antária, sem expedientes, seguiu a trabalhar para Silvério. Ficou no mirante com o menino, um refúgio, onde podia sonhar. Silvério nunca subia até lá, temia os fantasmas.    

                                                                   

"(…) Eu sou uma menina do mar. Chamo-me Menina do Mar e não tenho outro nome. Não sei onde nasci. Um dia uma gaivota trouxe-me no bico para esta praia. Pôs-me numa rocha na maré vaza e o polvo, o caranguejo e o peixe tomaram conta de mim. Vivemos os quatro numa gruta muito bonita. Quando a maré está vazia brincamos nas rochas, quando está maré alta damos passeios no fundo do mar. Tu nunca foste ao fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com um ar espantado, como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis escuras, roxas, verdes e há planícies sem fim de areia branca, lisa. Tu és da terra e se fosses ao fundo do mar morrias afogado. Mas eu sou uma menina do mar. Posso respirar dentro da água como os peixes e posso respirar fora da água como os homens…" Sophia de Mello Breyner Andresen. In. A Menina do Mar. 

 

 

Munido das pistas que Madame ia deixando registradas no caderno, suas ideias fixas, a repetição de situações, a confusão entre personagens, tempo, lugar, Wong Lam arriscou procurar a hospedaria A Roseira, em Lisboa. Na pequena valise que levava consigo, ia o registro do imóvel da Praia da Senhora da Pedra. Havia mesmo um estabelecimento no endereço que o doutor conseguiu, agora conhecido como Mansarda do Silvério, Alfama. Um senhor um tanto decrépito, meio dobrado sobre si, atendeu ao hóspede. No balcão, pequena placa ao lado da sineta, senhor Silvério, folhado em bronze, gravado com letra cursiva.  Wong Lam pediu um quarto. Perguntou sobre serviços de alimentação, camareira. Uma vez por dia iam-lhe arejar o quarto, informou o homem da recepção. Uma sopa era servida em pequena sala contígua. Se o hóspede preferisse, havia a confeitaria a alguns passos. Enquanto combinavam os detalhes e o velho entregava uma chave, passou por eles uma senhora. Sua magreza lembrava em tudo a senhora descrita por Madame. A mulher olhou para os dois homens com humildade e avisou que buscava os pães e os legumes. Wong Lam desvencilhou-se do recepcionista com elegância e saiu atrás da camareira, silente. Esqueceu propositadamente a chave sobre o balcão, Silvério não notou; assinou Dan Wan em sua ficha, trocou dois dos números de seu passaporte. O endereço que informou era de Foshan. 

 

Madame não revisitava o que escrevia. Sabia que os textos diziam o necessário, eram informativos e lhe ofereciam proteção. Não imaginava que lhe trariam responsabilidades futuras. Sabia que os profissionais de saúde que se importaram com ela eram gente bem. Agiriam a contento, seriam o vento a agitar velas, a divulgar a transformação que ocorria em seu coração. Com o lápis a dançar diante do rosto, a senhora seguiu a relatar. 

 

Não demorou muito, a camareira estacou diante da Rainha Dona Amélia. O aroma da casa de doces era agradável. Wong Lam entrou pouco depois e a viu, não no balcão, mas indo sentar-se a uma mesa vaga. Da cesta que levava, ela retirou um caderno, nos moldes dos que Madame usava. Abandonou-se na cadeira, a olhar para fora. A padeira veio trazer-lhe uma caneca de chá e levou a cesta. Parecia acostumada àquele comportamento da freguesa, pois logo trouxe, muito arrumados, vários pães e um pacote de ervas. Wong Lam se sentou no balcão. Pediu uma ginginha. Dessas genialidades, trouxera consigo um dos escritos de Madame. Tomado da leveza de suas práticas matinais, o doutor aproximou-se da mesa onde a camareira estava e esperou. Quando Antária ergueu os olhos erradios, Wong Lam pousou o caderno que detinha ao lado do que estava sobre a mesa.

 


Comentários

Postagens mais visitadas