O sonho de Portugal 12




As gentes de Nossa Senhora da Anunciada e Santa Maria da Graça puderam ouvir a ruideira. Era dia de São Sebastião. O homem, um belo exemplar entrado nos quarenta anos, perdera os freios da combi antiga, toda pintada de novo, calotas brilhosas e vidros limpos. Habilidoso na direção original, conseguiu tirar o veículo de um passadiço que dava só para ele passar, ladeando um vinhedo coberto de flor. Jogou os faróis a um barranco afofado, sem prejuízo para o riso dianteiro. Dali podia mirar a Costa Azul. A combi esfumaçou, estrebuchou, o motor bateu. O homem já tivera aventura parecida, em estacionamento de andares. Conduzia o mesmo carro retangular, por um corredor, na descida, onde mal passava um fiat, em franco aumento de velocidade. Na ocasião, um pisão e o freio funcionou, impedindo que o carro voasse por uma janela esmerilhada. Seria uma queda de quatro andares. 

 

Crianças levadas acompanharam o veículo barulhento pelo passadiço da quinta, a atirar pedras, que assentaram sem dó na porta traseira já riscada. No rádio, se ouvia o Aleluia, do Messias de Handel, seus acordes finais, que morreram assim que o último suspiro da combi se ouviu. O belo homem cofiou seu bigode reto, retirou um mapa rodoviário do porta-luvas e pôs o indicador primeiro sobre Sesimbra. Voltou a mão ao ponto onde julgava estar e calculou quanto tempo demoraria para chegar ao seu destino, se cumprisse o trajeto a caminhar. Era preciso afundar os pés no Sadão, antes do anoitecer. Assim a tia Cotinha o havia orientado, para que encontrasse de uma vez uma boa companhia com que dividir as fronhas, as contas e o coração. Fernão retirou, de um arremedo de cesta, uma garrafa de Moscatel, uma caneca de barro e um pedaço de queijo de Azeitão. Sentia o suor escorrer-lhe da nuca. Recompôs-se, assim que tomou o primeiro gole de vinho já aerado. Lembrou-se de certas mãos, as d’uma brasileira triste que desistia dos estudos quando o viu tocar. Fernão se apresentava de quando em vez, inspirado por alguma saudade latejada. E ele o fazia sob os arcos das igrejas, sentia-se útil aos passantes nas ocasiões. Foi assim que conheceu Lenora. Estava, a moça, apoiada em uma coluna do Templo de Diana. Tocaram-se as mãos no final da récita, falaram da situação acadêmica, do sol da tarde, da falta dos botões do decote, do cheiro de lavanda que vinha dali e trocaram dois beijos. Depois, a moça tomou um auto para Lisboa, um tanto afogueada e indecisa, por pouco perderia seu voo. Trocaram olhares, adeus e o Lembra-te sempre de mim cantaram juntos, uma frase ele, outra ela. 

 

Fernão suspirou. Deixou o mapa e caneca no banco, desceu da combi, esticou-se e seguiu em direção contrária ao mar, refazendo o traçado das rodas antes da parada abrupta. Não demorou vinte passos e lá estava, ainda quente, um parafuso que se parecia com outro que, engatado a um pistão, comunicava a injeção do diesel ao motor. Ao abrir a porta que protegia a alma da combi, de fato faltava uma peça. O parafuso encontrado serviria, de improviso, pelo menos para que Fernão pudesse conduzir o auto a um mecânico. Sem muito pensar, achou melhor a solução que andar a pé. Queria ver o rio mais para saudar a tia, dar-lhe um obituário natural. 

 

Outras lembranças os fatos presentes lhe deram, enquanto Fernão tentava fazer a combi funcionar. Os seios fartos da mãe, dos quais obteve sustento até os sete anos. Tinham perfume de gardênia. Os seios daquela cobra de Caiscais tinham cheiro de almíscar. Os da tia cheiravam a queijo, fruto de um abcesso teimoso que convivia bem onde se podia meter o nariz, como que a dizer que o tempo da amamentação já ia, perdido.  A combi por fim roncou e havia um funileiro há poucos metros, que deu jeito na condução. Às cinco da tarde Fernão afundou os pés nas margens do Sado, não gastou mais de cinco minutos no gesto. Pode dirigir tranquilo, ida e volta, e retornou a Setúbal.

 

Para muitos, Portugal é sonho, e isso também é transitório. Menino agora homem, Fernão espera pela Luz de puro amor, assim que entra no Convento de Jesus, calçado e limpo, bigode escovado. Põe os olhos no grande crucifixo do altar, abre um hinário que descansa sobre o banco e lá estão, na página trinta e dois, as duas primeiras quadrinhas que compôs, ainda menino, e deu ao padre para rezar na comunhão.

 

Vamos partilhar o pão

Com dulçoso gole de vinho

Vamos pegar na Tua mão

Pra não nos perdermos no caminho

 

A ceia em que agora brindamos

Tua Presença em nosso coração

Faz brilhar todos os anos

Que vivemos em busca de perdão

 

O ofício diário, de escrever contos, evoluídos dos obituários e das quadras, conserva acesa a esperança de Fernão: encontrar, um dia, a tal Florista, aquela que não pudera concluir o mestrado, ou doutorado, já não sabia mais. O Sol, mais algumas horas,  iluminaria novos arcos. Portugal era dono deles. 

 

 

 Lembra-te sempre de mim, do álbum Sempre de mim, Camané

A Julia Florista - Leonel Vilar e Joaquim Pimentel


 

 

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