ciranda das flores 9




Para todas as escolas estaduais que puderam comprar dois pianos de orquestra um dia

 

Trinta e cinco anos. Os dedos, pousados sobre o corpo do piano de cauda executavam um exercício simples – sequência polegar, médio, mínimo, anular e indicador, uma série de vezes. Estudava-se com tal ação a angulação da palma, a redondez do dorso, a pressão contra a superfície, sofisticada para cada digital, o comprimento correto da unha. Quando a mulher passou pelo piano, ia com outras preocupações e não o enxergou, apesar de tratar-se de um antigo modelo orquestral. Estava encostado a um canto, o tampo sobre o teclado, baixado. Após cumprir o objetivo que a trazia àquele lugar onde não se encontrava voluntariamente, a mulher voltou sobre os próprios passos e então o viu, um negro lustroso, madeira tratada à maneira de fórmica. Sua atenção foi como que captada, ou transferida. O artefato ainda guardava algum brilho no corpo. O tampo sonoro, ela não pode ver. Trinta e cinco anos. Era esse o tempo de não o ouvir. E o escutara todos os dias, de segunda a sexta-feira, durante a hora em que duravam os ensaios do coro, por onze anos. Não sabia que idade tinha o piano ao se conhecerem. Ele estava velho. E pianos vivos são pianos novos. Esses dados não são relevantes na narrativa. O piano em questão era um ícone, um totem para a mulher. Um achado arqueológico, da envergadura de um fóssil. A jornada temperara as emoções, posto que a mulher também estava velha. Da beligerância juvenil, a tristeza passou a esse estado dos contempladores senis, cujo universo psíquico vê parede fluida, como que através de uma cascata fria. A mulher aproximou-se devagar, como quem se avista com o sarcófago em um velório sem flores, sem amor. Ela sabia que as energias benéficas de sua mão direita não devolveriam  ao piano sonoridade, não lhe dariam Chopin. Quase perguntou se ele se lembrava dela, das cantorias compartilhadas. Sua intenção era tão bonita, forte, comovida. Ainda teve tempo de rápida avaliação. Lamentava pela mudez, pela madeira, teclas, maquinário complicado ou pelos dedos dos mortos que o tangeram há mais de quarenta anos? Não poderia tardar naquela casa ou na despedida fúnebre. Soltou logo a mão da madeira lateral do instrumento. Uma fatalidade. Muitos ais compuseram sua cantilena de despedida. Seria o piano do auditório? Ou o do Salão Nobre? Como fora trazido para aquele lugar? Viera montado? Suportado por cabos, braços? Estava totalmente morto? Estava ali porque não havia condições de o transportar para as exéquias adequadas? Quem se importava com isso? Ainda haveria uma chance de o ver, dias depois. Quem sabe o piano estaria no mesmo canto. Quem sabe fosse ali o seu destino final. Se assim, a mulher lhe faria mais perguntas, contaria sobre si, sobre a Música que ele lhe deu. Deixaria sua impressão final com a mão esquerda. Quem sabe se, para ela, haveria chance de retorno. Talvez até lhe deixasse alguma flor. Partitura de adeus, quem sabe.

 

Em tempo: dias depois, lá estava ele, no mesmo canto. Sem flor. O dia, solar, deixava entrar no ambiente um pouco de luminosidade. O ritual previsto, de conversar um pouco com ‘a velha carcaça’, desconcertou-se. Do lado oposto, coberto por um feltro verde com babados de crochê, cansados do tempo estes também, jaz o outro piano, em pior estado. Sua pata traseira foi amputada, a cauda apoiada em duas banquetas. Dois navios enferrujados. O som da nobreza, desalmado. A mulher limitou-se a olhar, sem emoção, de um para outro. Deixou as exéquias para outras partilhas. Moveu-se, ela mais suas memórias, rumo ao sol da manhã que se desenvolvia em dia singular. Nada a dizer, escrever, cantar. Talvez, a Marcha Fúnebre de Chopin. Lá fora, uma parte do pátio em que a mulher se sentava, nos seus dezessete anos, quando retardava ao máximo a volta para o convívio familiar enfermo. Mais de dois metros de altura em móveis, aparelhos e outros cacarecos, compondo uns cem quilos de lixo reciclável. Memória, Educação, Música. Reciclável. 

 

 









 

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