Ciranda das flores 6


Para Amabilis

 

 

A essas alturas, fossem prímulas zebra azul pinceladas no tecido da bata. Do que se vestia a aprendiz, o olhar no horizonte, a espiar comprido pela janela da quinta? Roça é maneira de contar, o canto da coleirinha lhe segredava. Havia conflito algum para narrar. Começo difícil. 

 

Estamos na Rua dos Caixeiros 12, quase esquina com Avenida Lope Ortiz. Sem mirante, há que se contentar com vista rente ao portão. Morada de pouco tempo. As razões de se fazer parada no alagadiço, quem sabe se as encontra na almofada de alfinetes, no emaranhado de fios, no bastidor. No tecido floral, dobrado ao fundo da cesta. O trem passa perto com os contêineres, aos berros. À serra do mar, só pode botar os olhos quem saia à esquina. As narinas recebem, de cheio, os sons e os cheiros da avenida, que na primavera arrebenta em ipê amarelo. Há a Constelação do Cruzeiro por sobre o telhado. Gente que escreve mensagens pacíficas à mão, com letra redonda, e as vai plantando nas caixas de correio. 

 

Na morada da Caixeiros 12 há uma passarela de uns quatro palmilhos. Dela, decisão de virar a esquerda, em direção à avenida, ou à direita. Há, no curso, o que lembra pavimentação para duas rodas. Caprichoso engenho, a emoldurar a esquina e travar ali qualquer movimento para quem se locomove sobre duas rodas paralelas, balanceadas com duas rodas menores um pouco à frente. Risco inútil descer ao domínio dos autos em busca de trânsito.

 

Do que se move a aprendiz de rodas? Jubilação. Às condutas, ao comportamento plausível, arado e tear ensejariam tomates, mantas. Com isso, se praticaria caridade. São maneiras de contar. O bom é que a deixavam morar. O alagadiço era bairro de gente bem. O espaço aquém e além do portão lhe permitia vida antes da boa viagem.

 

O interessante – e também o que inviabiliza a narrativa -, é que estava tranquila a nossa aprendiz de vilarejos. Havia disciplina no olhar pela janela, no atravessar o portão, virar à direita e dispor o lixo doméstico para o caminhão apanhar. O voltar para a quinta fazia correr mais sangue pelas veias, sensação de dever cumprido. Lá dentro, a casinha era limpa, ordeira. Cerca de dois anos ali, apaziguara-se-lhe a cabeça, ordeira ela também.

 

O que mais? Havia o auto. Podia-se ir à praia com ele. Em outra direção, ir ao norte pioneiro. Tudo uma questão de objetivo, de acertar o caminho. A quinta inspirava, pelas torres de comunicação da avenida, a falar além dos passos, dos giros das rodas, das limitações visíveis. Ficar era opção. Ir, possibilidade remota. O aprendizado enfrentava, se evadia, espantava, gracejava, sorria, debandava, participava, cantava, criava parcerias, ultrapassava, atravessava, se expunha. Fazia dos contratempos, afrontas esporádicas, razão para observar verticais, horizontais, perspectivas cavaleiras. Era roçar e tecer. Às vezes a aprendiz de flores esperava a volta de um gato. Mas isso é outra história.

 

A bata, que um dia fora laranja, seguia quieta no vigário geral. A minimizar palmilhos. Pensava sobre isso a aprendiz de mafagafos. Ah, insulou-se em seu mausoléu particular, em mania umbilical. Acomodou-se nas mesquinharias das rugas. Esqueceu-se do turbilhão dos terminais de ônibus vermelho. Afogou-se em orgulhos. Perdeu o viço das estamparias. Só, elegera as mãos a tecer. Mãos que viúvam a ausência de volição.

 

A aprendiz de urbes delonga o albergue para idades avançadas. Lá se encontra instrutura amiga, em ocaso. Entre a quinta e o oásis, a quinta é fluida, boa parceira de expedição. Move em si. No mais, ainda se percorre, uma vez por semana, trajetos bem conhecidos, previsíveis. Lá onde os encontra, a aprendiz de gafanhotos vê humanos imantados.

 

Emocionar-se de medo oferece lição alguma para a alma aprendiz. É defesa tacanha, de sobrevida. Apreensão enfraquece a alma motriz. Por hora, a porta da Rua dos Caixeiros 12 é ponto de partida para pesquisa. Alguns dados, para ponderações. Da porta para dentro, chá de rosas brancas e o tecido de prímulas zebra azul.

 

 

 

 

 

 

Comentários

  1. Liane! Que forte e que bonito. Lerei muitas vezes. Muito obrigada. Abraço aperttado e carinhoso.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas