Contos de Tarantá 9




Wasi Estrela se perguntava, muita vez, o que trouxera Menininha ao seu portão naquele fim de tarde. Já se ia uma gestação humana a convivência das duas, envolta em fina névoa, das descobertas do agir, pensar, comunicar, até sentir. 

Estrela tinha um bom contato com as religiões, lia as histórias do Velho e Novo Testamento, os mitos gregos, o Baghavad Gita. Atualmente, estava às voltas com a obra de Francisco Candido Xavier, um brasileiro que lhe causava espanto. Certa noite, enquanto embalava o cesto de Menininha, pôs-se a ler em voz alta, um trecho sobre uma moça, Cecilia, habitante dos Campos da Paz, a cantar uma canção ao amado, separado dela pela vida. 

Wasi Estrela às vezes fantasiava que fora Aracy, a Mãe do Dia, quem lhe trouxera Menininha, pouco antes de ir deitar. Outras vezes imaginava um redemoinho forte, e o Saci a tirar a criança de seu cachimbo, de a haver escondido ali para que Menininha não enjoasse com o rodopio. Outras vezes cismava que a menina viera junto com o pólen das flores, flores tardias de verão, gladilos e margaridas multicor.

Até aquele instante, tudo parecia sereno, ordeiro. Exceto pela falta d’água que castigava a região, mais de um ano sem chuva regular. Era possível contar, a que eventualmente caia, por pingos. O céu ficara mais azul que nublado no período, mas quando emburrava, era para avisar isso mesmo, estava carrancudo com as bravatas dos homens.  

Se houvera psicólogos na região, quem sabe Estrela visitaria um. Parecia inimaginável construir um processo de análise sem a intermediação de um homem grisalho, alto e esguio, de voz grave, vestido com paletó. Era assim que Estrela intuía o terapeuta a quem ela chamava Rasquim. Não que seu duplo, Wasi e Estrela, formasse a saga o médico e o monstro, mas era quase isso. Ainda, um terceiro eixo da análise, o Dona. Complexa trilogia, de dar nó em qualquer vivente.

Estrela estava contente com tudo. Menos com a falta do cuco. Dava a impressão de que o tempo fora surrupiado, obrigado a interromper seu curso por birra, descontentamento, algo assim. O rio, em resposta, rareava. Dava para andar sobre as pedras. Para pescar, os trabalhadores precisavam se afastar quilômetros do vilarejo. 

Qual queixa levar para o ambiente terapêutico? Um fato? Ato? Emoção? Sonho? Estrela percebia o olho do furacão em sua parede sem relógio: o medo da vida – escapar, apagar, paralisar, empacar, silenciar. Cortar. Renunciar. Desistir. 

Agora Estrela tinha uma neta. Tinha mesmo?

Quando Estrela se tornaria a luz de si? 

Pergunta pretensiosa, pensou. O senhor Rasquim que a perdoasse. Que não a julgasse soberba. E o que seria de Menininha se ela faltasse? Que controle a Dona quereria assumir?

Estrela ousou projetar dez anos à frente. Eram suficientes para conduzir a menina, ponderou. 

O cotidiano tão simples que levavam era povoado por poucos personagens: três rapazes do curso regular, duas mocinhas que iniciavam os estudos, o padre, visitante de todas as casas da região, um dedo de prosa com o santinho era sempre bem vindo. Gelson começava a fazer parte do cenário, mais circunspecto, agradável companhia contudo, sempre com um mimo para a menina. Até lhe trouxera, a ela, Estrela, uma caixinha de música por esses dias.

Gelson e Estrela conversavam muito sobre os avanços da ciência. Que os dois se sentiam um tanto antiquados, apegados a objetos de corda, quando todos viajavam pelo espaço. 

Ainda pairava no ar uma antipatia entre os habitantes de Uruaçu e Estrela. Difícil conviver com um povo que tinha medo do novo, do conhecer. Menininha era uma espécie de bálsamo para todos. Através dessa presença silenciosa, que só fazia arrulhar e correr, tudo harmonizava, espairecia.  

Um fato abalou o vilarejo na manhã de sexta-feira, 25 de setembro. Eram nove e vinte. Próximo ao rio, perto da casa de Estrela, engastado a uma árvore, pendia o corpo de Etelvina, por um caprichoso sisal feito a lençóis. O corpo posava como se voasse. Quem o encontrou foi Menininha.

Comentários

Postagens mais visitadas