Contos de Tarantá 8

E não é que havia a ferrovia? Saltava aos olhos, no meio da mata, de Uruaçu a Porto Nacional.  Parece que o país nunca se entendeu, nunca andou. Era mais que um traçado no centro do mundo. Raiava um coração de lisura e conversa. Às gentes desse povo foi dada pouca voz e vez, que só seriam usadas mediante esforço. Povo mortiço, movido a rio e chuva recorrente, difícil vociferar; fazer, mais ainda. Nada que a firmeza de um remo deixasse em branco, contudo. Entenda-se remo com um lápis bem apontado. Dói pensar que há muito açoite nesse rincão. Os homens, que devem ser tudo, comem poeira com as mãos. 

Os dias vagavam ao sabor do céu cinzento. Companhia terna, de brincos tão quietos. Entretidas com os lápis e as folhas de sulfite, Estrela e Menininha aprendiam, juntas, a arrulhar. Na estante do piano, agora queda um Junqueira aberto na quarta lição. 

De mutismo seletivo Dona Wasi não sabia muito, mas suspeitava que pudesse servir à sua neta. Naquele mês, o dos cães loucos, Estrela andara muita vez a enfrentar vizinhança, a procurar os começos da Menininha. Queria seus registros, legalizar a situação. Gente alguma reclamava a criança, a loirinha esquisita, que bem cabia àquela mulher de fala longa e prolixa, também esta esquecida das legalidades, a estrela que fazia os filhos tomarem o trem para a vida. Estrela andara por Hidrolina e São Luiz do Norte, mas pouco ou nada soubera do paradeiro dos pais daquela cria, deixada ao vento estio goianense. Dona Wasi não pudera saber como Gumercindo, o menino do búrico, tinha as informações e era só aquilo, que a mãe de Menininha falecera e o pai havia partido.

 

Ano ímpar é todo calendário, mesmo os talhados a números pares. 7horasequatrominutos, a manhã nasceu enevoada, sisuda, mas ali pelas nove oferece um enamorante sol, de arrepiar os cabelos de qualquer crente... o mar virar sertão... a canção tocava no rádio valvulado e afugentava o sono pouco descansado. 

Há dias, as anotações de Estrela eram introduções. Poucos dados lhe dariam chances para desenvolver algum pensamento. A ideia de pensar bem todo tempo parecia implausível. Quanta faina para varrer ruminações. Quer saber sobre isso, dedique-se a manter limpa uma casa, mesmo se nela more apenas um ser vivo. 

Ter pensamentos bons, mesmo que garimpados, é o único remédio, repetia o locutor do cancioneiro radiofônico, o jargão cantarolado pela cidade. Pululavam as negatividades, apesar do privilégio de um bom café da manhã, das cobertas, duas, três camas se assim desse na veneta; um fogão que, do jeito dele, é fiel fonte de calor. A companhia morna da própria voz, que faz a sua politica de atualidades, a cada dia envia eflúvios de qualquer sentimento que se imagine, basta afinar-se a cabeça do freguês. E, de quebra, contar histórias.

Estrela poderia, sem pressa, enumerar um tanto de benefícios outorgados pelo Plano Superior, a fim de que se mantivessem barquetas no prumo, nesse rio negro sem fronteiras em que a vida mareja, na iminência do grande encontro com o profundo. Entretida, não percebera a correria de sua Menininha rumo a janela. Voltou só dentes, brilhosa, trazendo o embrulho fedido nos braços. 

Dilermando, após um sabático de cinco dias, chegara molhado, com bolinhas de mamona grudadas na cauda, miados longos. Permitiu ser banhado, secado, comeu bem, o que é um excelente sinal. O bichano enrolou-se sobre a estante. Antes de cerrar o olhar lilás, o gato estirou-se ainda uma vez e dirigiu a cabeça para a parede do cuco. Eram 8h. Silêncio.

 

 

 

 

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