contos de tarantá 3
Era
uma borboletinha daquelas amarelas. A gente vê muitas dessas na primavera.
Calhou
da Amarela deixar seus ovos, do tamanho da cabeça de um alfinete, na folha de
um limoeiro. Não demorou muito, os ovos eclodiram e vieram as larvas, que logo
ficaram grudadinhas umas nas outras, é assim que elas ficam. Larvas famintas.
As
dessa espécie não tinham disfarces, nem cabeça de joaninha ou de alien ou
cobra, nem pelos espinhudos, tampouco listras. Eram cor de nada as larvas. Em
sendo assim, poucos se importaram com a presença delas no limoeiro, nem mesmo o
roceiro, que as deixou ali, se arrastando pelo perímetro da árvore. O homem
gostava de borboletas e borboleta não chupa limão. Um beija-flor de papo branco
cheirou algumas, pegou duas pra almoço de seus filhotes. Uma aranha bem pernuda
aproveitou outra, que escorregou e foi se aninhar em sua teia. No geral, os
dias de larva transcorriam como é na meninice, um vai vem manhoso do vento, uma
chuva ou outra e outro tanto de sol.
Uma
sinfonia de seres pequeninos e gigantes, andando ali por perto e bem longe
também. A noite estrelada encantava os bichinhos, que esticavam seus pescoços
para a ver. As larvas, em uníssono, sonhavam viajar pra perto das estrelas,
conhecer aquelas coisas, aqueles brilhos, também aquele caldo escuro em que as
estrelas esperavam, penduradas. Vida de estrela é o oposto da vida de larva,
mas as larvas achavam o brilho das luzinhas bonito demais.
Nem
todas as larvas percebiam a mudança de posição das estrelas, nem distinguiam
diferentes brilhos, nem o apagar de algumas. Não compreendiam as tonalidades do
céu. Ou o que eram aqueles flocos de algodão marrons, brancos, cinza, amarelos,
róseos, violáceos. Sabiam que caia água do céu, às vezes muita, outras nem
tanto. Água friinha. As larvas escutavam as trovoadas longe e perto, se
chegavam mais nesses momentos. O medo lhes visitou em uma noite de temporal. O
vento cantava tanto e era tanto que as larvas quase voaram da folha, não fosse
a cola que as mantinha grudadinhas.
Juntas,
as larvas se comunicavam por vibrações. Ora sístole, ora diástole, ora um
arrasto para lá, ora para cá. Alguma espichava a cabecinha para a borda da
folha e olhava para baixo, correndo risco de seguir o destino daquela, que o
cuco deixou escapar do seu bico e a galinha levou. Na manhã de um dia mais adiante, as lagartas
que permaneciam, se alimentando de sumo de limão sim, o roceiro se enganara, e
também do pó que o vento trazia, que a água pingava, que o sol aquecia, já eram
pupas.
Ali,
penduradinhas por um gancho tão miúdo, balançando, dormindo. Dentro dos
pacotinhos, era dormir e analisar potências. Definir cores, medidas, formas,
perspectivas, estilos de voo, aptidões. Nessa parte da vida, os bichinhos já
vibravam por conta própria, o que lhes garantia aparecerem, dali a pouco, com
coisinhas que se poderia contar: olha, aquela tem uma pintinha preta a mais, a
outra uma barra azulada, tão tênue que precisa ver com lupa; outra, tons de
branco contra amarelo, aquela é toda amarelinha.
A
primeira deixou escorrer o liquido todo, remexeu-se, dançou, sacudiu e eis que
despontou, inteirinha, abrindo e fechando as asas como quem experimenta a luz,
o ar, como quem expande os pulmões, como quem agradece o espaço. Quando ela
terminou de se espraiar, as outras parceiras quase que concluíam sua
transformação.
Era
um grupo de dez, aparentemente idênticas. Só observando com vagar pra ver-lhes
identidade. De um gesto apenas partiram as borboletas, dez, atraídas por um
colorido que se estendia na pradaria. Florinhas do campo, multicores, sorriam,
convidando ao baile. Logo que suas patas se cobriram de pó das flores, as
borboletas souberam a que vieram e foram trabalhar. Tinham cerca de duas
semanas para polinizar vasta área, trabalho lindo, consistente. Tudo tão
simples, previsível. Não fosse aquela fagulha na noite do temporal.
Como
dormem as borboletas, alguém sabe? Pois já não eram dez, mas seis. Um canarinho
havia levado uma. Outra perdeu, de súbito, as forças. Caiu por terra. Outra,
foi pisada por um menino desavisado. A outra enveredou pela plantação e ninguém
mais viu. A outra foi compor a coleção de um lepidopterologista. E então
sobravam cinco.
Parceragem
proibida, para que? Foi o que perguntou a amarelinha toda amarela à que tinha
um rabisco bem pequeno, preto, como se o nanquim houvera escapado ao escriba.
Bom pousar naquela boca enorme, cheia de pontes. Mas, se ele a fecha? Então
acaba.
Havia
algumas horas, a nanquim voara até o riacho. E o jacaré estava assim, a boca
aberta para o sol. A borboleta achou nessa preguiça risonha algo inusitado e
pousou sobre a língua, carnuda e fria. E assim os dois ficaram. Vibravam, o
jacaré um baixo profundo, a nanquim aquele singular sopranino, que lembrava
certas cantoras russas. Um imperceptível movimento da cauda do jacaré avisou
que ele tinha que submergir. A borboleta, apresentando-lhe seu melhor bailado,
que só compartilharia com um macho amarelinho, deixou-o ir. Não havia
explicação. O sinal que tingia sua asa ficou ainda mais preto. Naquela tarde,
beijar as flores pareceu à nanquim tocar estrelas.
Como
borboletas não dormem, descansam, a amarelinha com o sinal de nanquim voou
parte da noite, perto do riacho. Avistou dúzias de pares de olhos luminosos, a
boiar nas águas mansas. A borboleta, com a respiração muito curta, ousou voejar
perto daquelas luminescências. Um par de olhos começou a piscar, num vagar de
esmorecer. A nanquim foi-se chegando, chegando. Era ele. Na noite que deixava o
rio fazer as vezes de céu, a borboleta pousou na pálpebra fechada.
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