Hospital Casaredo 99





“Não há arte onde o homem não é livre e a Natureza não quer”. Miguel Torga. 



Foi assim que o enfermeiro Gaspare acalmou as inquietações, há tanto tempo presentes em seu espírito. Bom começar a história pela solução. Vinte e cinco de abril, o moço terminou o capítulo noventa e oito do texto de Madame. Ela já dera mostras, hora de finalizar o show. Gaspare havia contado fatos do cais de Lisboa que nem ela nem ele entendiam. Histórias que ele presenciou e até viveu, um tanto adormecido pela adolescência, pela inocência. Régia, seu anjo protetor, ensinou-lhe muito. Madame pôs o rapaz à vontade para escrever um trecho ali mesmo, que enriquecesse a historia de José Gaetano. Dessa forma, o enfermeiro saberia, se o ofício de escritor morava nele ou se era mais um diletante, como ela própria, um homem que fazia das palavras seu setting terapêutico. Alertou para o fato dos muitos olhos a escutar, através do jornal, que o compromisso se estendia, passava a referência, questão ética. 


Alguém no cais portava uma infecção orgânica que era importante domar. As portas estavam abertas para verdadeira devastação. Diante do Tejo, um homem  chorou, esperneou, fez charme e caiu em si. Difícil encontrar alguém para lhe estender a mão. As duas foram oferecidas. 


O estudante de enfermagem não tinha dúvidas sobre o que o excitava. O mar, os movimentos dele, a graça de suas cores, o vigor dos sons. Pensava em voluntariar-se para tripulante de uma embarcação. Exerceria a profissão às vezes de interno, com a documentação da escola a lhe dar suporte. A excitação aumentou com o sonho de navegar, em especial após a morte de Régia, e era derramada ao violão, tocado ali mesmo, na Torre de Belém, o moço até ganhou alguns escudos com sua música. É certo que esteve, nos últimos seis meses, em companhia de alguns marinheiros. Conheceu de perto a euforia, o clímax ágil e volúvel, deixou ir companheiros sem uma única pergunta, sequer o nome, apenas a constatação de que não iam bem de saúde. As questões de contaminação o exasperaram. O moço percebia que era mais do que furtar penicilina benzatina para os atender, eram almas vazias, que se perdiam na noite inescrupulosa, escravizadas pelo sono acordado. O remédio até daria conta de sanear o corpo, caso o cancro fosse tratado a tempo. E o eu profundo? O que fariam de seu mar interior? Do Poseidon que morava ali? Ou seria Tirésias? O rapaz constatou, triste, que aquele cais não revelaria a Alissa que brincava em suas entranhas.

 

Por sorte o tempo de se dar conta, do que seria dar remos a Alissa, passadas sete semanas frenéticas de cais de porto, o surpreendeu. Quisera, ele também, viver as nove entre dez glorias do gozo, através da mulher idealizada em si. Até montou-se com os apetrechos de Régia e esteve ridículo. A vida, cobra d’água de colar, o inspirou por uns dias. Até ele se deparar com Vera, o ator shakespeareano da Ópera de Shangai. O enfermeiro quis saber, quis as poções, quis adivinhar o sentimento de ser amado. Amar, envergando o personagem ele mesmo, doía muito. Amar, na pele de Alissa, revelou-se insípido. Por saber muito, o mago Tirésias teve os olhos queimados. O enfermeiro obteve ajuda de um conto da mitologia grega. Poderia, ele também, guardar todas as memórias.


Na manhã do dia vinte e seis, ao ouvir a história dos lábios daquele a quem amava como filho, Madame não soube o que dizer. Lembrou-se do seu José Gaetano, da vida toda que ele comprometeu, a esperar pela cobra albina. Coitado del’, não seria feliz ao lado de Rosália, tampouco de Alois. Era apenas um guardador de inquietudes. 


A Cidade do Porto estancou o tempo para José, abrigado por uns dias em casa de Mrs. Readcliff, onde a menina cabo-verdiana de sua tripulação seria governanta. O comandante pode obter nessa pousada algum sossego, nada de seios dessa vez. José adquirira, de um mercador da Rota da Seda, a Principia, de Isaac Newton. Foi com esse livro e a causa de todas as coisas que iniciou amizade com a dona inglesa. Impreciso mas honesto, disposto a construir uma voz narrativa coerente, José lamentou não dominar o idioma de Newton, precisava de auxilio para compreender certas passagens do texto. A senhora, gentil, ofereceu-lhe companhia de bom grado. Ela lia alguns trechos, pouco entendia do conteúdo, traduzia o melhor possível, seu coração era bondoso, paciente. Estudar a órbita da Terra em um copo d’água, os lapsos de tempo, os épicos gregos, a lei da gravidade. Sonho, realidade, comprovações, refutações, pensamentos puros. Foram sete semanas de conversação. 


A cicatriz nas costas de José constringiu-se e ele seguiu vivendo, o suficiente. Mrs. Readcliff e ele passeavam pelo cais, tomavam vinho, escutavam o fado. Leram juntos uma brochura de D. Dinis I, com várias cantigas de amigo. Em noites frias, ela na espineta, ele no santur, tocavam diante da lareira, entre  xícaras, uma chaleira de porcelana, um pouco de castanhas assadas e figos. José, homem de fé medieval, apreciador da boa mesa e porque não, da boa cama, afastou a hipótese de namorar Mrs. Readcliff. Contou-lhe de seu coração, doado a Alois e encerrou questão. A senhora lamentou a impossibilidade, sonhou com se ampararem um ao outro na velhice. Dentre tantas partilhas, falou a José do sanatório, de amigos que acabaram na Assistência. Por alguma razão, ela sabia que tinha os dias contados para estar naquele lugar. Filtrava medo e cultivava a resignação.


O sétimo ciclo de José na Terra suspirava, o organismo estava debilitado. Ele também sentia muito medo. Um novo natal estava próximo. Soube, através de um oráculo, que nascera com lua em peixes, que seu temperamento era sem pouso, disposto a mudanças. Onde ele cairia morto, era a pergunta que se fazia. As cruzes que carregava serviam como etiquetas em seus diários de bordo. As memórias lábaro. O comandante sumiria no mundo a desejar reembolso na área sentimental. Não receberia. Não entendera que afeto se dá, sem olhar a quem, sem esperar resposta. Jogar-se da borda de uma nau já não era opção, melhor aguardar o veredito da lei natural. Bastava uma onda ousada, um descaso. A Terra é o maior presente que se pode receber, melhor agradecer, da aurora ao ocaso, repetia Mrs. Readcliff. Pensar, era outro prêmio, pouco apreciado entre os mortais, e já começava a fraquejar em José. Quando ele disse adeus à senhora e lhe beijou as mãos, soube que o pouso seria, também para ele, a Assistência.


No Porto de Cabo Verde o derradeiro encontro, Alois e José. Estiveram juntos em novo sarau familiar. Apresentaram Hookah, peça composta pelo amigo Olivairas. Nostalgia de cortar o coração. A comunhão reavivada entre eles pesava estranhamente. José admirava os colegas, se alegrava com seus ganhos pessoais, vitórias. Não se justificavam os incômodos que percebia em si, os centros de energia do organismo em rota de colisão, talvez pelo fato de estar velho. Depois desse encontro musical, jazzístico, soube o por que de sua mania em perscrutar tanto os olhos das pessoas. As cicatrizes deles moravam no fundo da íris e eram mais doridas que as suas. Os colegas careciam compaixão. O comandante sentiu-se apaziguado quando o parágrafo que descrevia o adeus secou sem rasuras. 


Criterioso, o pirata pôs termo ao seu diário de bordo. José livrou-se de páginas onde havia praticamente rabiscos, também notas de rodapé e de margem, preferiu manter os trechos que soavam lógicos e menos arrogantes. Confirmava-se o que dissera Mrs. Readcliff: já passamos por todo plaisir com que a vida pode nos brindar. Paris é mesmo uma festa e todos brindamos por lá. Viemos por tantas vezes, e a tantos mundos, para usufruir tanto. Agora, só restava abrandarem-se os instintos e aperfeiçoar-se a alma. Para Mrs. Readcliff, alma era artefato imperecível. Nada mais belo a almejar, Mr. Gaetan. Seguir viagem, ampliar conhecimentos, percepções, refinar o jeito de amar tudo. Solidão, amigo? Olhemos a multidão à nossa volta. Intangível, porém multidão. Não é possível que amar seja assim tão longe. Ao ouvir o raciocínio da nobre dama, tomou-lhe as mãos e as acarinhou com humildade, agradeceu a acolhida. Segurou o baú de trouxera pela argola, vestiu a casaca verde oliva recém lavada sobre camisa nova e seguiu para o porto.


José demorou-se a entender que o que ia ali, sob seus pés, estatelado nos paralelepípedos era um corpo de mulher, vestido com blusa de babados e saia, imundas as peças. Pensou em tirar sua casaca e cobrir aquela criatura. Um cão rosnou e ele seguiu adiante, teve medo. Antes de subir à bordo da Sor, José Gaetano quis saber mais sobre a Assistência, perguntou aqui e ali. Nada há, de tão intenso, que consiga permanecer e se tornar verdadeiramente necessário. Foi do que José se lembrou, na medida em que os latidos do cão se confundiam com as ondas. Dias depois, diante de Alois, repetiu a frase e ajuntou esqueci-me do autor deste pensamento, amigo. 

 

No dia vinte e sete de abril, o verso foi cantar no Sanatório da Cidade do Porto, contou Madame. Mais uma manhã febril, cerca de vinte páginas despidas no caderno de espiral branca. O verso encontrou lá o maior diamante do mundo, tantas peneiras por ali bamboleadas, tanta água e pé com fungo e sílica, gente esquecida, algum quimbundo, gente escaldada, perdida. O verso foi cantar no Sanatório da Cidade do Porto, feito rio empesteado de mercúrio. A mãe de oitenta e cinco anos (e isso já é outro verso), entrevada, pediu à filha cuidadora me põe o vestido vermelho que hoje tem bamboleio no bulício. Loanda kukambula mbundu xequerê, vichi Maria vem, vem logo te benzê. Hoje o verso foi cantar no Sanatório da Cidade do Porto. Ah, Douro. Ah, enfermeira Joana, deusa de ébano, acode. Pescador já vem, pescar a saudade do meu bem. Joga a tarrafa, chove o vintém. Ó encontro de almas! O verso, na margem direita do Tejo, olhou suspiroso para aquilo tudo, para o rinoceronte incrustrado na Torre. O leito de mais um poema velou o cascalho da vida doída de Lamego. É preciso doer com educação.

 


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