Hospital Casaredo 91
À beira do Tacho
Esse que em mim envelhece
assomou ao espelho
a tentar mostrar que sou eu.
Os outros de mim,
fingindo desconhecer a imagem,
deixaram-me a sós, perplexo,
com meu súbito reflexo.
A idade é isto: o peso da luz
com que nos vemos “Idades Cidades Divindades”
Quando deu por si – e, em sua condição, o fenômeno pode ser brutal -, Madame entendeu que adormecera, a testa apoiada sobre o antebraço esquerdo, a tela do computador a mostrar fundo marítimo. Será que morri? Foram apenas três minutos ou três mil anos, viagem longa, profunda. No gramofone, um concerto grosso de Bach ou, quem sabe, Corelli. A senhora custou a situar-se, lembrar do que fazia no ateliê antes do sono. Todo candura, o enfermeiro Gaspare massageou-lhe os punhos com vagar, um movimento que descia até o polegar, retornava ao pulso. O sangue desenhou rios de maaprana e alguma força iridescente revigorou as faces, iluminou o olhar, tal qual cetro de D. Dinis, a expressão que veio. As sensações, há tempo amortecidas, reportaram ao centro genésico, onde tudo é origem. Ecos de energia, aurora boreal.
A ancianidade, às vezes, permite concertar no plano físico, nevasca há dois dias da primavera. Viver é bom, nem é preciso saber para que. O toque do enfermeiro, religioso, informou ruas estreitas, noites de frio, mareadas, janelas que mereciam flores. Rito e frases descontínuas se enfrentavam, sóbrio ele, lúcidas elas, algo muito simples, alimento vital, que ajuda o enfermo e o entorno. Acontece de o presente ser em demasia, maior que a resistência, ou roupa de número menor, tecido pouco elástico, cor berrante. Madame intuiu dias vindouros, em que a proposta de restituição se faria inevitável. Algo como amoras negras servidas com aveia. Chá de hortelã frio. Mamã desnudou os cabelos, dos tempos em que eram fartos. Relaxou a faixa dos seios, o espartilho. Impôs dois faróis, horizontes claros, lances que a sanidade disputa a braço dado com o transtorno. Um gosto de batom, o do lábio superior. Eclodiu a surpresa, nebulas na Terra. Elegante, casaca púrpura, Alois, ela o reconheceu, margem de rio, Alverca do Ribatejo talvez. Com ela esbravejaram, Madame pôs tenência, era deselegante encarar; para ela, era aceitação da verdade. Alois, o homem que cantava. Afagar a memória com ele, naquele fim de tarde, misericordioso idílio. Um novo surto se avizinhava, a senhora pediu para ir, sozinha, ao jardim da capela.
Chegamos a um bom número de páginas, assim o último parágrafo digitado por Madame naquele dia. Qual o destino desta viagem? Não sei. A camuflagem do conto sugere divagação. Nada que habilite tristeza, as pessoas não veem como bons tais sentires. Na idade em que estou, a voz do disfarce desgastou-se. O Casaredo é o melhor lugar para se estar. Tendo a mala pronta, vou à janela e está a chover. Decido, penso assim, ficar mais um dia. Um de nós vai de bicicleta. Outro vai também. E outro dispara, em um fusca azulado, que roda bem na Almirante Gago Coutinho. Outro tem o violão colado aos dedos e outro ainda, uma cadeira estranha, que nada no fundo profundo do mar, onde a luz se adapta ao breu. A mais incrível das damas que vai é dona do quartzo da Álvaro Cunhal. Juntos, vagamos separados, um punhado de ouro do Tacho[1]. Os personagens de mim, todos vão bem. Soleá, às vezes vem, às vezes não. Arranha-céu e ladeira e carris, Lisboa. A história de Portugal, uma pena desconhecida. Outra gente conta histórias do casamento da chuva, pés em África. Quando foi que a enfermeira Joana embalou-me o sono com a rapsódia? O sopro do vento traz gotas avermelhadas, animadas, úmidas, ouve-se um bordão em A, executado ao harmônio. Quem será o noivo? O espectro vibratório é saudável. Fogo. Soubemos, ao compor a canção da noiva, que a sessão improvisada encontraria caminho distônico, ainda assim de bom sentido. Algum músico falharia na execução? Muita vez. O sexto componente da trupe e o ciúme. Difícil encontrar final para o discurso, diferente do que pede a partitura. Então, a noiva tropeça no tapete, diante do fogarido. Chegamos a um bom número de páginas, algumas úteis, outras podem-se descartar, são ruído. A cruz que designa o próximo capitulo, ainda não a escolhi.
O vento, adorável, trazia cheiro de rosas à capela. Madame permaneceu próximo à fonte, desatenta. O caderno de espiral preto dormia na sacola atada ao peito. Um suspiro, o lápis pareceu bem apontado, pôs-se a escrever.
Ai, que escutei um silvo. Voltei ao leito, o anjo Maria ajudou-me a deitar, lavou-me, como a um gato miúdo, aparou-me as garras, os pelos. O biombo não deixou saber as horas, nenhum outro enfermeiro no dormitório naquele momento. A confusão da mente cedeu, as colegas parecem dormir em paz. Sou eu, estendida na praia, camisolão encharcado. Ai, que o ventre vazio e virado ao avesso espanta os siris, um milhão deles a servir de pasto em mim. Ai, que eu não podia fugir, fingir, dizer nada. Fechei o punho para o azul, para o verde, para o sal e eram teus olhos acastanhados que iam longe, sem entender. Alois. Teimosia, maresia, o mar naquele gesto não era meu. Nem maldade era, ou descaso. Era o entendimento do que é livre e não, do que é querer só um, sem o dois, eram os interesses, os desejos, os sonhos, há que se ter respeito para escolher.
Ai, que escutei um silvo. Era o tapete de flores para Nossa Senhora estendido no Alto da Serafina, lamento continuado, ladainha e pranto, tanto, tanto, sol aloirado no entardecer, arremedo de canto quase passa, incendeia, quase valsa, quase voo, arrebenta a pele e suspende. Alma alguma a bulir, sem uma moeda, ou suco com canudo. O bicho de olhos mornos e chifre e carapaça, que se pensava dormido, aparece e fecha a pata e avisa vou bater e escoicear e morder. Um maracujá a secar na fruteira. Outono. Cadê coragem, doçura de mulher, cheiro de seio de mãe. A dona que lesse aquelas frases diria nada de novo que eu já não chorei. E eu estendida na pedra, a verter amônia dos poros, feia das feias, bagaço do fosso e bela, como toda idosa o é.
Ai, que escutei um silvo, lamento continuado, sem poção que lhe desse jeito. Alois. Era o mesmo que o sol, já dormia em outra praia.
Madame quis gritar e não pode. A garganta secou a tal ponto que grudou no céu da boca. Matilde, a filha bruta, em percebendo a asfixia, apavorou-se pela primeira vez em toda sua jornada de enfermeira. Queria, do fundo do coração, aliviar aquela velha demente e mais lúcida que muita gente. Ergueu a senhora como se fora pardal caído ao ninho, passou-a à cadeira e voou com ela para a enfermaria, impulso inadmissível, comprometedor. O doutor Wong Lam dava instruções aos internos novos e os deixou em nuvem, para desatar o nó da língua de Madame. Colocou-a de lado na maca. Tocou as vértebras cervicais, uma a uma e estalou o pescoço, desfazendo a pressão do fundo da boca. Massageou as costas, como se oleasse as escápulas. Foi liberando o braço direito, adensando as costelas móveis, pontuando a base do esterno e fazendo pressão leve sobre o coração, como se o bombeasse. Quando tocou o estômago, a bile e muita espuma escapuliram. Um cheiro ácido veio junto, deve ter queimado o esôfago e a traqueia. Em sentido horário, Wong Lam girou as mãos sobre o ventre da velha e com olhar de animal de savana, pediu uma comadre. Todos os pudores foram para o espaço no gesto de arrancar o fino tecido que cobria Madame. Logo o ar ficou empesteado, porém um alívio imediato se instalou, como se enxofre tivesse poder saneador, todo conteúdo depositado no vaso de aço. Matilde resgatou a senhora daquele universo umbralino e a mergulhou em bacia morna, óleo de lavanda para temperar. Os olhos da senhora eram o mar depois da maré desovante. O anjo Maria achou por bem acordar Gaspare do intervalo, pediu o violão, sabia que Bolero a los padres[2] ajudaria a balsamizar a ferida de gozo que tanto fez sofrer. Uma combinação de plutônio e rádio ainda rondava a enfermaria e o banheiro, a lavanda bravamente se interpunha. Um pouco de cravo da índia apareceu, em forma de incensário. Clarice. Também ela sabia ninar.
Os universos dispõem de elásticos de tempo para curar aflitos. Homem ao mar, homem ao mar, homem ao mar, gemia o senhor da Nossa Senhora, voz sumida, equilibrado sobre o andaime do segundo piso. Ele subira, antes, em um arbusto não muito intrincado do caramanchão e tinha olhos de furar, ameaçadores, arengava seu novo mote Nossa Senhora dos atóis, desate os nós, gramíneas entre os dedos.
Acostumados a estripulias daquele personagem, Alev, o homem invisível e Gilmar, o sanfoneiros dos animes, sentaram-se em um banco, cuja esplanada deixava ver as ondas agitadas, as nuvens escuras. O paciente, cada vez mais apequenado, dependurado no andaime, agitava-se, como a lavar os vitrôs. Gilmar gozava de trégua para os módulos na Universidade, teria dois meses para preparar o texto de conclusão. Sorria naquele instante, fatigado e satisfeito. Em breve, colaria grau como arquiteto. Falar de futuros não cabia no Casaredo. Atentos, os dois colegas aguardavam, o velhinho desceria por vontade própria.
Hospital Terra lança um homem ao mar, munido de barco, lábios para sugar, paninho, camisa, bússola, carta náutica, estrelas, leme, mistério. Poder premonitório. Uma pena e algum diário de bordo. Um ou outro socorrista faz-lhe companhia, o trabalho é preciso, exige atenção.
Não há nada tão instigante quanto desconhecer. Supõe-se a missão, oculta à dádiva do esquecimento. O entendimento geral é o de uma tendência a preguiça. E não é estranho que um homem prefira a brandura da areia, pálpebras cerradas, um odre de licor e ararinha azul a grasnar seu nome, conforme as horas desfilam. Ave espontânea, voa da baia ao batente da cabine, apenas para aprender seu nome. José.
Madame olhava as nuvens chumbo, depois escrevia. Alois. O cheiro de enxofre ainda pesava na pele, o leito da enfermaria como pousada, Rosália aceitara alimentar-se de um figo.
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