Hospital Casaredo 90
A chuva de Cristino
‘Baixa, poema, invoco-te à luz da lanterna
à noite insone, renego o frio das cobertas
Folhas ocupam o pátio, como ao vento a dor
Entre as cortinas em gaze a lua declina
Triste a seguir a estrada, uma estranha até o fim
em florescer e murchar conhece-se a flor
mesmo desconhecido seu pouso entre os plátanos
Encerra a tarde um arco os pardais em alarde.’ Yu Xuanji
Coisas relâmpago aconteciam. Cortavam o espaço e, de alguma forma, vinha a boa fortuna. Ela voltou ao Casaredo para morrer. Overdose. Caiu diante do portão de André. Era a mãe biológica de Pérola, sem identidade a mocinha, uns quatorze anos, se tanto. Madame teve muita pena, estava na praia quando a viu cair. Gritou. Comoveu-se. Precisou ser acudida por Gaspare. Alev, o homem invisível, nem teve tempo de tomar a rapariga nos braços com vida ou dar-lhe qualquer socorro. Recolheu-a, um passarinho desfalecido, direto para a câmara fria. As providências legais foram prontamente executadas pela guarda marítima, acionada pelo hospital, o advogado Giulionni atento e igualmente enternecido. O óbito foi oficializado às quatorze horas daquele dia esplêndido.
Havia marcas de violência reiterada no cadáver. Uma nova gravidez, doze semanas, o embrião decomposto no ventre, esmagado. O quadro lembrou, ao enfermeiro Gaspare, elegias chinesas que lera, de tradução difícil. Poemas escritos por mulheres, pseudônimos masculinos, enviados ao mundo em bilhas flutuantes. Eram evocações, peças para canto e instrumentos de corda. Mencionavam saudade, tristezas, perdas e estavam dirigidas às ondas do mar. Por alguma razão que lhe escapava, o enfermeiro passou a noite em vigília, a tocar guitarra flamenca ao lado do ataúde daquela mãe, na Capela Rosália.
Madame ia e vinha, mariposa a se debater pelas paredes. Não lhe caia bem ao íntimo saber de mães jovens e mortas, ou a chorar e pedir que lhes tirassem o embrião do ventre. A enfermeira Matilde achou por bem deixa-la em movimento, a lidar com suas lembranças, sob efeito de tranquilizantes leves. Mamã sossegava por alguns instantes, tomava notas, tornava a rodar. Fora duas ou três vezes à capela e não pode entrar.
Finalmente recebemos autorização para aportar, recordou José Gaetano, como que pondo em ordem os dias de febre. Mestre Maden estava junto a mim no convés, escutava as ordens com paciência. A página do diário foi sendo povoada a sofreguidões, a cruz egípcia encimava o relato. A Armada Santista impôs a séca, palavra corretamente acentuada, para que convocássemos nova tripulação, arranjássemos carga, admitíssemos passageiros. Por alguns dias, vagamos pela cidade de Santos, Brasil, sem itinerário, ainda bem, tínhamos a dama preta do doce de marmelo para nos albergar. Para mim está bem desse modo, rezingou Maden. Tenho saudades, nesta vida, é d’uma cama com colchão e lençóis brancos de algodão, preferencialmente. O balanço do mar faz falta, a rede da pousada consola. Será que eu encontraria, por estas beiras, algum gajo que me vendesse uma concertina? Está rouca a minha, não lhe tiro bons sons, está bêbada de tanta maresia. Faz-me doer, estou só nas noites quentes. Toco um corrido, fado, vira, desgarrada, rondó e me enredo. Sem ela, esvazio. Bem que podíamos zarpar para Lisboa só nós dois, o comandante e eu, sem os atrapalhos de tanta gente. Pensar que a viagem malfadada que fizemos movimentou quase duzentos, entre marujos e outros postos, terror e tremor. Às vezes penso naquela manhã do motim. Foram quatro batéis abarrotados de homens. E para onde? Aquele mar parado. Aquela putalhada, não sabiam nada além de algum vento (e havia algum?). Não me lembro, se algum deles domava o céu, sabia apontar o Cruzeiro. Um estendal de peúgas, era a bandeirola daqueles tais. E a caridade da língua, cada um a falar um idioma? Perdoa, mãe dos homens. Pobres almeidas da vida, devem estar todos no lar da ctenophora. No mais, é tergiversar, que descansem em paz. O Guadiana e o Douro me chamam tanto. O Tejo.
Aqui, nesta terra brasileira, foi lalarilando Maden, provei da cachaça maria da cruz, que tonteia no primeiro trago e faz curva por dentro. Não quis mais, acorda a lassidão. Ai, que o tempo de eu sair da casca está longe. Açucena nem dói mais. Talvez me caísse bem uma saloia moça, de faces rosadas e sorriso, ai o sorriso. Aqui tem essas damas pretas tão belas, tão cheias, tão longas, tão beiçudas, cantam e gingam as ancas com as açafenas sobre a cabeça. Eu levava uma dessas na barca, com a aquiescência do senhor José Gaetano. Alugava uma casa nas paredes em Lisboa, na Alfama. À lume, trataríamos de nos gostar a saloia e eu, de minorar as aselhas, de estarmos um para o outro sem aterrar. Sei que a mais das vezes sou atoleimado, mas conservo o meu valor. Sei servir, como bem disse o senhor comandante, que alma boa. Eu, sem eira nem beira é que não posso mais. A Haruka do Japão deu em romance de cavalaria, senhor? O japonês, meu confrade, pouco tem que ver com a história? E a minha historieta de amores pela filha do oleiro? Tu a escreveste? Ó Maden Pedro Mestre, que fazes que não suspendes a Julieta? Desse jeito, hão de pensar que todos enlouquecemos.
O tempo tecia sua barra florida, floreiras antigas emurcheciam; novas florinhas brotavam aqui e ali. Eros, a desflorir.
Para José Gaetano as pequenas coisas, naqueles tempos de Santos, qualquer arremedo de diálogo, iam para o diário. Ele detinha, amarradas a fita de couro nas bordas, páginas de um estranho guisado literário, temia não poder contar com ele para nada. Mal sabia, os ingredientes com que congregara o texto eram uma jornada. À bordo da Sor, ou no cais ou em terra, havia muito que transformar em memorial. A verdade, há muito, deixara de ser o que José sonhava de si. A máscara caíra. Escrevia, como quem descasca batatas a um batalhão. Era difícil, para o bucaneiro, corrigir o sal ou saber quando usar o cominho.
Difícil, nos confins do mar, alguém roubar a ideia de alguém, as histórias surgiam, ventos alísios, sumiam, vinham os contra alísios. José abraçou o diário de bordo de número seiscentos e o ninou. Ensaiou pequeno valseio pela estreita cabine. Verso a verso, veio a cantiga, o menino, vindo de uma flor de água, em a noite clara, sem clarão de lua. Nos seus olhos toda a alma nova, nua. No choro mirrado canção de amor, tão sua. José parou, pena a girar na mão esquerda, para lá e para cá, tremia.
Perguntou-se se ter um filho é missão de todo varão. Seguiu a ponderar, feito um sonho bom, menino, terás coragem. Levarás bandeira, espada, a cor das vinhas. Cantarás serestas, modas, valsas, trovas e terás calor no coração. Neste instante, o comandante imaginou o refrão e o cantou madrugada, lua nova, breu nos vales, promissão. Um silêncio enternecido aquieta a escuridão. O menino chega leve, sem nenhum ruído. Ó pequeno, ó mansinho, par’ pegar naquela mão. O menino acalentado pela chuva de verão. De desejo, encolhidinho, feito em forma de canção. Ó menino, toma as asas d’um alegre querubim. Canta livre, ó menino, ó orvalho, Valentin. Ainda ensaiou uma coda o José, se é de cada um a chave do destino. Este tempo tem lugar par’ o menino. Algum colo bem que anseia, enfim, o dia de ninar-te em doce melodia. Para um improviso, até que soava bem. José anotou mais esta cançoneta e foi para o convés.
A senhora Antária contou a história do menino a Madame, em um de seus últimos momentos de lucidez. Cristino partira com o casal espanhol, em noite de chuva. Deolinda acabara de morrer, Rosália que não voltava. O senhorio a ameaçar com o machado, que cortaria a criança como a um garrote e o serviria cozido com hortelã. A pausa de tanta dor veio, os fidalgos adentraram a Mansarda do Silvério, sujos de lama até os ossos, despojados de vários bens. O consolo deles, naquela confusão do assalto que sofreram entre Leiria e Lisboa, foi dar com o menino de cabelos encaracolados a dormir no sótão, onde Antária os acomodou. A mulher, magérrima de maus tratos, ofereceu o menino ao casal. Ao saírem, ainda madrugada, em libré de aluguel, o menino foi com eles, agasalhado em um manto azulado. Toda alegria de Antária foi junto. Ficou a ilusão de liberdade, salvação para o pequenino. Na gaveta do sótão, um anel de rubi, passado antes pelos intestinos da senhora Carmén. Silvério nada disse, sobre nada. Antária, na pousada, nunca mais falou, até a visita do doutor Wong Lam.
Ó Maden Pedro Mestre, hoje estou saudoso, saudoso de um jeito gorado. Madame escutou a voz de José em seus tímpanos e não soube, se sentiu pena ou nojo. E não é que, ao recordar o comandante, me vem misto de gastura, ternura, desejo familial, desejo de tomar um puto ao colo, dar-lhe de presente um acalanto, até trocar os paninhos seria um encanto para mim. Lá na pousada, eu a cozer o Gomes de Sá[1], um belo pudim de claras com bananas flambadas, aquele sorriso gaitado a bebericar na bancada, aquela boca cheia de dentes bons, o corpo ardendo-me nos peitos, o cheiro das groselhas e das boas cançonetas. Um bom livro para ler na alcova enquanto ele dormia a sono solto, dessas histórias da Inês Pedrosa, dessas que tem mais conteúdo em duas páginas que muitos romancistas nos podem dar em trezentas.
A noite, friinha, convidativa, o licor, os encontrou de peles. Um pequeno fardinho a choramingar leite materno. E eu, a olhar a dona n’uma cadeira de braço largo, a meditar, enquanto o filho se fartava. Ó senhor José, sonho o mesmo sonho que tu, agravado pelos cabritinhos a correr pelo pasto, um quadradin’ para agricultar. Eu seria venturosa.
O que temos é o mar, hein Mestre Maden? Agrada-me este gigante esverdeado. Não alardeio caçadas excepcionais, tretas com corsários, mergulhos para o abismo. Um lugar para semear, seria promissor. A propósito, o fundo do mar, como é, comandante? Mestre, estive a mais ou menos vinte e cinco metros ao fundo. E viste o fundo, deveras? Estava eu, próximo a um banco de corais, Mar de Oman, então sim, naquela longitude vi o fundo, banhado de sol. Há um espalhamento da luz, caríssimo, algo difícil de explicar. O contraste dos objetos nos permite ter uma paisagem bonita. Um peixe, diferente a cor dele da do fundo arenoso, um prata desigual nas escamas, é ilusão tocante. A luz se espalha, é absorvida pela água e produz outras energias, em geral calor. Lindos rastos para a visão. Tu deverias perder o medo, mergulhar, Mestre. No dia do sinistro com a filha do intendente, enfrentei o mar e isto deu-me coragem. A primeira parte do mergulho foi com sol a pino. Nessa hora, pude orientar-me muito bem e distinguir as formas contra o fundo. Cacei os cavalinhos sem susto. Pus na gamela também um par de peixes palhaço. Eu sonhava a menina em meus braços, a me sorrir pelo presente que ganhara. José deixou no ar silêncio. Maden o escutava, quase invejoso. José continuou a contar que o tempo fechou naquele dia, desceu à água uma neblina fina. Foi o instante em que a menina se lançou ao mar, do lado oposto em que eu estava. Eu a teria percebido pela iluminação, embora pouco pudesse fazer, vestido naquela lataria. A menina foi o seu primeiro amor, senhor José? Eu não diria isso, foi meu despertamento para a vida como homem. Foi ali que entendi que havia eu, e que o outro era além de mim. Aquela morte me fez perder a chave desse portal. Não é que a menina leve a culpa por isso. Eu é que fui fraco, lento, qualquer desses adjetivos que nos mantem imaturos, submersos, sem ramagem. Virei concha. O menino escafandro, tenho algum orgulho disso, hoje entendo bem. Por mais que me esforçasse, não achei o caminho da luminosidade, da libertação. Não dei frutos, portanto. Transformei a menina em uma espécie de salvador, braços e pernas que eu julgava não ter, uma vida que era obrigação minha viver. É como se, suicidando-se, a menina me mostrasse uma paralisia que me pertencia e eu nem me dera conta. Terror e tremor[2]. Como se eu me recusasse a andar, por medo à vida. Dizer isso vai me consolando, de algum modo, porque eu continuei a nadar, apesar de tudo. Mais, continuei a cantar.
Não se iluda, ó Maden Pedro Mestre. Não é o encontro com o outro que nos dá completude. Não existem almas gêmeas. Panelas e tampas, essas bobagens. É algo que nos acontece quando podemos, queremos, nem sei, entregar-nos, trabalhar juntos. Estou, parece-me, a pular uma das etapas, o outono da vida. O Japão ajudou-te de alguma forma, senhor, perguntou Maden, ainda fixado no episódio da moça de meias de seda verde. Ali, Mestre, talvez eu tenha transformado saudade em literatura. Tudo é lírico naquele país, o ir e vir pelos mares, até a chegada do outono. É possível compor uma ópera.
A escrita tem este mistério, uma plumagem que dá guarida a certos pensamentos. O escritor, também o leitor, se dão o direito de não compreenderem a ideia insinuada e, mesmo assim, enlevam-se com o som, com o ritmo, com o brilho, com a cor, com a luz absorvida pela frase, que gera cristais de guanina e calor. Eu fui ao cúmulo do medo, para depois ler e escrever, Maden. Eu quis, desesperadamente, ver o nu por inteiro, temia o meu desnudamento, que emergisse o menos bom de mim e era somente o peixe ogro a chorar. O arroubo que me causa a pintura viva em cada página, a vida que ela vive, a verdade que esplende. Sou encantado por isso. Supostamente protegido pela maquiagem, por contar idílios imaginados, perdi todos os meus cílios e as sobrancelhas viraram mata virgem. A barba é que seguiu a crescer, desencontrada, nunca desenhei bem o bigode, os cabelos das canelas se foram. Pelo menos as ideias fixas não mofaram em mim.
Assim me encontro agora, sem outono, só mormaço. Quando me cai o pano, por pouco que seja, eu existo. As meias de seda verde são só o desenho, Maden Pedro. Tudo está por viver. Todas as recusas, não correspondências afetivas, de pessoas, de circunstâncias, tudo meias de seda verde. José Gaetano silenciou, tarrafa sobre o ombro bom, ajeitou-se no convés, aprumou as costas ainda doloridas. Uma brisa vinha do mar, afável. José teve vontade de cantar. Ou chorar, é o mesmo. Lançou a rede. Quando é que tu vais voltar, Alois Donis?
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