Hospital Casaredo 89
Cacos de reminiscências
No cais, o destacamento militar tocava dobrados. Homens do tiro de guerra postados aqui e ali, embora não houvesse alarme que justificasse farda. A orla toda enfeitada de fitas, bandeirolas. Via-se gente a se aproximar, para dançar quadrilhas, brincar as rodas. Via-se erguer grande fogueira. Era festa de algum santo. O coração de José Gaetano mantinha o compasso lento. Sentira o almíscar, uma casaca púrpura voejava no convés, fora remessa da Armada Brasileira, chegara pela manhã.
Madame retomou as pontas de sua narrativa, escrita a conta-gotas em seu caderno de espiral preto, o tic tac do tempo ora espera, ora escuridão. Que bom, Gaspare logo viria, para dar sentido ao que não soasse lúcido. Não se lembrava bem, se antes ou depois do que contara como sendo quarentena. Mamã arriscava pensar em José como oásis, que um dia ele enroscara as mãos às suas. O cheiro, alfazema e louro. A pele, curtida de maresia, rija, torso de estiva, desajeitado no tocar, alguma aversão, algum desejo, alguma ternura, quase infante. Muita vez, ouvira do enfermeiro Manoel a frase se te incomoda, o problema é teu. Incomodava, não saber, não confirmar, não ter, não ser. Melhor deixar tudo como estava.
Rosália sentia saudades de valsa. No alpendre da Roseira, eles se embalavam ao som do realejo, um papagaio a gritar impropérios enquanto seu dono descia a ladeira, rumo ao Tejo. Ambos a rir, José e o anedotário de marinheiro, picante, ácido. Algum dia foram, sim, oásis. E essa agora, onde a verdade, onde o conto, onde o limite, onde o que se permitira, onde os ventos que os trouxeram, afastaram, onde a tolice, o compromisso, o trato, onde? Nenhum? Para seu próprio alívio, Mamã conteve o impulso de rabiscar a página e atirar o caderno. Já fora capaz de se dominar algumas vezes nos últimos dias. Não queria mais ser repreendida por Matilde, que lhe brindava com beijos babados na testa.
Gaspare pendurou o avental, cortou uma fatia do pão que fizeram juntos. A visita à cozinha quis exercitar as mãos de Madame, tentativa de evitar inflamações nas falanges. Fora uma tarde proveitosa. Debulharam o milho, passaram os grãos na máquina de moer, misturaram a massa, sovaram, enrolaram as broinhas. Esperaram que o alimento assasse. Durante a tarefa, Madame olhou as páginas do caderno de espiral preto, uma a uma, como se as atravessasse. Em voz alta, leu algumas frases. Saboreou a experiência, como se a voz fosse de outro. Sentado à soleira da porta estava o senhor da Nossa Senhora que seguia, nos últimos tempos, os caminhos de Madame, de longe, aparentemente distraído. Displicente, o velhinho desfolhava um malmequer. Ao ouvir uma alusão da senhora ao Promontorium Sacrum, ergueu-se devagar. Aproximou-se da mesa. Humildemente, pediu que ela contasse a história do começo. Um lugar místico para os mareantes, Madame leu. Lá havia um santuário a Héracles, deus das forças da natureza. Também estava lá um altar para Cronos e o passar do tempo, bem como luzes para seus pais, Urano, personificação do espaço e Gaia, mãe terra. Os testemunhos históricos, o desbravamento do mar, patrimônio da Humanidade. José Gaetano sonhara com essa paisagem e acordou chorando. A dama preta do doce de marmelo o estreitou entre os seios. Alois, Alois, gemia ele.
Nesse ponto da leitura, o cheiro do pão atraiu o senhor da Nossa Senhora. Assim que Gaspare dispôs a iguaria sobre a tábua, o velhinho surrupiou uma das bolinhas, saltando-a de uma mão a outra. Voltou ao degrau, cabisbaixo, a cantar uma arenga a Santa Clara – a Velha. Dali a pouco, saiu a caminhar, parecendo ainda menor do que era. Mastigava com dificuldade. Madame desenhou na borda de uma página os arcos sobrepostos. Os mortos não estavam mortos. Os peixes ainda eram belos. Havia algo novo em Madame. Suas mãos pararam de doer. A direita se deitou sobre a esquerda. Um instante deste gesto bastou. Tomou o lápis com a esquerda, uma broinha morna com manteiga, que Gaspare dispôs em um prato, Madame a segurou com a direita. A xícara de chá de jasmim fumegava. Madame foi logo soprando.
Maden olhava por sobre o ombro do comandante, acompanhava seu jeito de escrever. O mestre não sabia como pedir. José lhe disse que anotava dados para um romance de cavalaria. A experiência do homem nessa forma narrativa era a de ler apenas. Sabia que produziria algo inconsistente. Contudo, no cais, qualquer artefato escrito era fonte de comércio. Se nada agregavam à condição humana, ao menos os folhetins permitiam fantasiar, ocupar o tempo, entre um carregamento e outro. A essa altura, para José Gaetano, o Japão finalmente significava um país, cheirava a soja condimentada, macarrão de trigo sarraceno, crisântemos e cebolinhas. Outros lugares da Ásia e África ansiavam por visitação. O fidalgo recobrou um pouco de razão nessa estada em Santos, Brasil. A conversa da última noite, no quintal da dama preta do doce de marmelo, antes de pegarem no sono, levou Maden a tomar coragem e pedir, para aprender a ler.
A primeira coisa que escrevemos foi corações remendados, contou Maden à nova tripulação de adolescentes. A manhã quente, dona de ventos periódicos, escutava. Estávamos nos acostumando a uma vida boa, como se nos houvera brindado um nada fazer reparador. Gostoso fenômeno, amigos. O comandante estava mesmo a precisar dessa pausa santista, também eu. Para recostar-se, o homem tinha dificuldades. Optara por apoiar a parte boa das costas ao mastro, perto da proa, de onde podia olhar o horizonte sem esforço. Uma dor o obrigava a levantar-se de pouco e pouco. Andarilhava em torno do leme, ponderava sobre o caminho de Superagui, como possibilidade para seguir com a vida mercante. O que era a sua vida? O que fazia dela? Poderia igualmente dar meia volta e rumar para Lisboa. Arriscava ater-se a nova calmaria. Na Rua Cor de Rosa, José Gaetano encontraria Antária. Cada vez que a mulher vinha ao seu pensar, lamentava os ventos que lhe ergueram as saias. Rosa nunca soube, ou fingiu não saber. A mocinha era um contentamento, para se contemplar, respeitosamente, a distância segura. José detinha uma sequencia de admirações inalcançáveis, engodos platônicos que lhe largueavam a solidão. Postou-se, às turras, com seus humores de amador inveterado, crente de que a vida lhe obnubilava qualquer atividade prática. “Ne plus ultra” – não mais além. Coitado d’el’.
O neófito Maden escreveu os primeiros vocábulos em algumas semanas, a despeito da falta de didática de seu mentor. Nomes apenas. Mamã, Helena, cordame, leme, estibordo, quilha, ovelha, lobo, vinhedo, armadilha, flor, oliva, meia, verde, seda, marmelo, cigarra, preta, nau, Sor, mar, onda, escafandro, comandante. Maden. Mestre. Ler era, ainda na base da silabação. Os signos adquiriam sentido, já não necessitava da imagem icônica que ele mesmo cunhava ao lado de cada termo. Cenas inteiras, foi o que Maden passou a registar, à perfeição. Era um artista visual, excelente ilustrador náutico ia se revelando.
A preocupação com existir, ser visível, dera de arrebatar José, sua angústia provocava indisposições com várias gentes, discussões sobre conceitos equivocados e narcisistas. Sempre no olho do furacão, era assim que andava José. Emburrecido, empacado, não podia mais evitar o confronto, a verdade. Qual? Que verdade tão infernal, a torna-lo pária entre outros seres, importância estratégica zero para a central do Universo?
Um Sancho Pança atento, Maden aproveitou que José Gaetano dormia, apoiado ao mastro, costas retas. O mestre tinha uma rede para cerzir, tecido denso, trabalho desconfortável. Procurou seguir a trama e fechar dois ou três rasgões. Uma tarrafada cairia bem naquela tarde de saudade, de sardinhas na brasa e vinho. Todas essas coisas enuveciam a mente do rapaz. O comandante não é Diogo Cão, refletiu. Mesmo assim, admiro algo em ele. Eu bem que gostava de ter um pai, um irmão da estirpe deste senhor. Divirto-me com suas fanfarronices cheias de babados, palavras belas em horas tão daninhas. Que seja voltarmos a Portugal, estou mesmo precisado de rever minha mãe, a herdade. Uma hora, terei de retomar meu pedaço de chão. Convidei o senhor José a passar uns tempos lá, pisar firme, olhar a vida pelo prisma da terra, da planta. Quem sabe o homem se anima a virar pastor de cabrinhas, cai-lhe bem para a vida solitária que leva.
Chovera novamente na madrugada. Tanto que, além de um banho, Maden pudera dar com o esfregão nas últimas baratas sobreviventes do porão da Sor. Ação atrevida, sair a socar baratas, vestido como viera ao mundo, para quem o quisesse admirar do cais. A nau estava livre da carga indébita. A última leva tinha zarpado no batel durante a tarde, menos Os Lusíadas, em dois idiomas, que Maden conservou consigo. O mestre queria ver a cara do chefe da Armada, ao deparar-se com livros da Coroa. Queria vê-lo recusar o recebimento, por medo de contágio. Queria ver o intendente explicar ao diretor da companhia de teatro que os cretinos tripulantes da Sor haviam furtado as roupas do elenco. Maden, ao se desfazer do entulho, olhou a crista do mar e coçou a cabeça, se perguntando quanto lixo e luto estariam acumulados no fundo daquele oceano. Onde era o fundo do oceano? Às vezes, ele parava diante do escafandro que ficava pendurado na entrada da cabine. Não tinha coragem de o mover. Mal sabia ele, somente olhava apavorado. Pensava ouvir a voz de Ezo, a gritar durante os golpes das lutas que praticava. No escafandro, se escondia a chave da tentativa de assassinato. Lá embaixo, onde a escuridão do mar começava, só de olhar, Maden ficava lívido. Dependurava-se perigosamente para fora da borda, na esperança de enxergar o fundo. O que via eram sobreposições de azul e preto. Triste forma de terminar os dias, no bucho de algum tubarão ou outro monstro qualquer. Valha-me a Senhora das Naus, livrai-me deste desterro. E fez repetidos sinais da cruz. Despertou desse cochilo com o chamado de José. Lancemos a rede, ó Mestre Maden Pedro.
Acreditava intermináveis as noites de alcova, entre delícias. Viajas. Nuvens erram. Deitas só e não reages. Finda-se o azeite da lâmpada; em torno, a mariposa. Yu Xuanji[1]
Um novo parágrafo de Madame, lido em voz alta sob o caramanchão, compus uma suíte polichinelo para insetos, ivanessas e escaravelhos. Ainda não faço ideia do meteoro que implodiu esta dimensão onde transito, camisolão puído e piolhos. Eu nada possuo, a não ser um escafandro. Não sabem da ópera a metade. Furtei sóis, tomei da taça de querosene. Tenho asco a certos olhares transtornados, o medo de serem desmascarados. Coitados d’eles. A resignação e a renúncia acenam, ao redor da lâmpada. O que teria eu para dizer sobre insetos, a não ser que são metáforas da luz? Ivanessas. Escaravelhos, pequeninos rinocerontes. Clavelito, clavelito, clavelito[2]. Si quieres água fresca, nina, vien a mi poso, nina, vien a mi poso[3].
As frases inconclusas quereriam informar que os dias de velhice são irremediáveis luzes. Madame lembrou-se de uma freira descalça, rosto deformado pela lepra. A mulher oferecia pão antigo e, ao divisar o tecido sujo que cobria Rosa, diante da Torre de Belém, chorou. O rinoceronte mal acabado, incrustrado ao pé da torre. Um paciente do Casaredo poderia passar eras a girar ali, ao redor dela, como se em torno de lâmpada fluorescente, a tagarelar de si para si enquanto se esforçava para realizar tarefas simples, como ir e vir pelo corredor. Quantos vizinhos de leito esvoaçavam pelos peitoris, sem eira ou beira, sonsos?
Toda vez que Mamã flagrava algum enfermeiro a puxar a comadre debaixo de um paciente, chorava. Matilde passava por ela, lhe dizia asneirinhas e seguia seu caminho, o quefazer era ininterrupto. Bom para os cabelos de fogo, arrepanhados sob um quartel de ivanessas. Uma falha, um branco se lhe desenhou na mente atabalhoada. Mamã atava, desatava. Por que aquele homem, Alois? O tempo em que deambulou pelas praias, nem messalina, nem diana, teresa d’ávila menos. Uma vaga ideia do distrito de Faro. Ali, o homem se apiedou e lhe deu coberta, meias de lã verdes e um par de botinas. Assim, ocultou-se o camisolão, os piolhos proliferaram. Como foi a migração de Lisboa até o extremo sul, não sabia. O que comeu? Sempre dormiu nas praias, com chuva e sol e vento e frio. Sem alma. Duas vezes, passou dias em uma cela de prisão. Como foi liberada, não sabia. Agora, era a cabeça raspada e eram as camisas e calças de reclusa, a caminhar em direção a Póvoa do Varzim. Quando lhe exigiam, mostrava seus papéis de soltura, protegidos por um plástico, mocados na botina esquerda. Assim foi em Beja, Setúbal. Não se lembrava de pedir, o que quer que fosse. Somente caminhava adiante. Como contornou Lisboa para chegar em Leiria, esqueceu. Ribatejo, carroça de bois. Ali ganhou mais coberta, mais meias, novas botinas e por várias noites partilhou leito com algum senhor. Alois, por que este senhor? O que comia a andante? Dormir, afora a companhia incógnita, era sempre diante das ondas gigantes de Nazaré. Com quem falou? Alguém lhe tocou a pele escamada? Ofereceu olhar são? Messalina não foi, não conhecia as artes. Avançou rápido por Coimbra, entrou na igreja de Santa Clara – a velha, flanou, poder-se-ia dizer. Aveiro, ela o fez mais lúcida, na carreira. Vestia uma blusa com botões, de algodão e babados, uma saia que lhe cobria as pernas até o chão, sem meias ou botinas. Os trechos do Porto, até o sanatório, pouca coisa restou de história para eles. Levou muitos safanões, cascudos, cusparadas, gritos, urinóis sobre a cabeça. Quando vestida em camisolão, lembrava viúva helenista. Em alguns momentos, visualizava bandos de imigrantes perto do fogo, pedaços de papelão, caixotes. Cães amigos. Cruzes sem identificação pelas estradas. Uma tentativa de estupro, mijou-se e afugentou o parceiro. Um risco de faca na mandíbula esquerda. Na reta final até a aldrava, juntou de seu uma garrafa, uns peixes de mar, secos, dentro da sacola de pano traspassada. E as meias verdes de lã, puídas nos dedos. Havia um pergaminho dentro de uma bilha, um poema. Levanta, rosa vadia.
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