Hospital Casaredo 88







Mnemósine ou a caixa do saltério d'arco



Uma memória instantânea, de parelha de touros no Ribatejo. Um puro sangue ao lado da carroça. A feira há uns metros. Um homem bruto e sincero. E a imagem esfumou-se. Madame, do caramanchão do hospital, contou ao seu caderno de espiral preta que o cavalo de Pablo Picasso foi contemplado pelo menino Júlio por cinquenta minutos. Ele próprio o fixou  ao mural do ateliê, silenciou seu semblante, meneou a cabeça algumas vezes, como se acompanhasse a linha única que compunha a ilustração. A figura fora encontrada junto à mão esquerda de Kyle, no dormitório que o paciente dividia agora com o senhor J.G. O desenhista da lousa de giz, com um olhar, autorizou à criança tomar para si aquele mimo. É bom que se saiba, algumas visitas eram permitidas fora do horário no Casaredo, Júlio tinha grande afeição pelos pacientes, passe livre portanto, para dar a eles seu imenso arsenal de energia prosaica. O menino era protegido da deusa das Artes, Atena, ou de Isabel de Castela, uma questão de interpretação.


A sala da cromoterapia havia sido palco de rumorejação adolescente, Júlio andava aflito. O terapeuta Blackwood o auxiliou a ordenar alguns caminhos novos, que começavam a soprar na mente do menino.  Revolução, somente em último caso. Antes, era meditar, tomar banho de mar, jogar capoeira com o doutor Itaú, experimentar a casaca branca que a irmã tecera, correr com Santur pela praia, no ritmo do cão, que envelhecera naturalmente. Por fim, cuidar das relações com o ateliê. 


Ao concluir a apreciação do desenho Júlio dirigiu-se, respeitoso, à doutora Dung Hanh, sua Carmen[1] secreta, melhor seria dizer Butterfly[2], mas o menino não conhecia. Perguntou-lhe, tímido, por que os homens se tornavam notórios. Notáveis, achou a palavra mais sonora e correta. Era o dia de seu aniversário, nem menino, nem homem, nem o que, talvez um touro pacífico. Uma homenagem estava programada para o final da tarde. Alev, o homem invisível, havia plantado treze videiras em sua honra. O pai, Javier, bailara a Nerabezaroa logo que o sol nasceu. Dung Hanh olhou o jovem nos olhos, quatro amêndoas tenras que se cruzavam. Há muitas razões para que notem nossa existência, Júlio. Nem que eu dobrasse mil grous, poderia responder com precisão a tal questão. Os grous vão e vem, em migrações lógicas, periódicas. São notados pelos sensíveis, pelos estudiosos. São escutados em sua passagem, por outros tantos. Essa escuta talvez seja uma boa resposta à sua pergunta. Notáveis e efêmeros. Como estão a cruzar os céus, os grous gritam com firmeza, sinalizam sua passagem. Dali a pouco, não se os ouve mais. Pablo Picasso deixou-nos o cavalo, querida Loto, argumentou o rapaz. Pode vir o fogo e queimar a obra um dia, devolveu Dung Hanh, em sua serenidade natural. Pablo se foi, com os grous.


As pessoas tinham dificuldade em pronunciar o nome Dung Hanh e a marca d’água, por ela idealizada, um loto branco, passou a auxiliar na comunicação. Júlio pronunciara Loto desde que chegou ao Casaredo, foi sua primeira palavra, aos três anos. No sossego dos lençóis, o doutor Wong Lam a chamava Liinfah, lotus em cantonês. Ao ouvir a melodia da nova alcunha, Dung Hanh acrescentou uma peônia à assinatura.


As leis de convívio se moldavam, ao estilo do Hospital Casaredo e não queremos, neste parágrafo, esvaziar de romance os consórcios. Estar entre pequenos núcleos familiares era saudável, garantia ordem, higiene, afeto. Discretos, os cônjuges viviam suas vidas de maneira alegre, gentil. Joana e Mr. Blackwood oficializaram sua união no cartório de Guimarães. O cantor Isidoro Brando fez quadro febril por vários dias após esta celebração, da qual apenas ouviu falar, prostrado em seu leito. Wong Lam e Dung Hanh mantinham secreto o seu enlace. Todos sabiam dos dois, sorriam do recato. Catarina e Matilde viviam seu romance a céu aberto. Vários beijos apaixonados eram trocados para quem quisesse apreciar. A senhora Chang pedia comedimento e sorria. Matilde beijava Madame, também às senhoras alcoviteiras. Isso lhe dava pontos para estar o que estava. Josefine, Clarice e Bernice, devotadas à senhora Chang, constituíram uma família a oito. Juntas, adotaram cinco crianças do berçário e seu convívio era harmonioso, jubiloso até. Gaspare auxiliava este enlace como podia. A amizade entre Javier e Alev era simples e dispensava, em tese, contato físico. Continuavam com a invisibilidade, os sumiços. O sanfoneiro Gilmar andava muito atarefado, com tempo mínimo para tocar, apenas com o músico Te Dan o fazia, madrugada alta. A enfermeira chefe Maria seguia em sua torre de silêncio, serena, lúcida. Muitos diziam que já era santa. O enfermeiro Manoel, até mais moço depois do AVC, estava para Mamã. 


Madame recebera, nos últimos dois meses, dez pedidos de casamento. O senhor da Nossa Senhora insistia em mesuras e arremedos de cantos portugueses para ela. Ele se ajoelhava e estendia estranhos anéis, feitos de gramíneas. Ela, gentil, declinou do pedido toda vez. Gaspare talvez sentisse falta de um corpo com quem se deitar. Ele ia, vez por outra, a Filgueira da Foz. O doutor Itaú, amiúde, ia a Braga e não contava as boas de lá, quem sabe algo escapasse na sala de cromoterapia.


O que havia em Filgueira da Foz era um grupo de música medieval, o Portocale. Os músicos eram bastante conhecidos na Europa. O Cancioneiro de Uppsala[3] , um dos repertórios divulgados. Atualmente, o conjunto  trabalhava nas Cantigas de Santa Maria[4]. Gaspare fora espairecer no litoral sul, olhar outras coisas que o Casaredo e deu com a trupe. O Portocale ensaiava em uma casa de cultura. Quando os encontrou, o coro cantava, a plenos pulmões, a Santa Maria, strela do dia[5]. Discreto, o enfermeiro espiou da janela, enquanto o ensaio durou. Dois músicos perceberam a presença do rapaz, dois músicos com fome. Duas energias muito distintas. Uma feminina, febril no alaúde, outra masculina, sossegada no fidle. Veio o intervalo e a moça se acercou primeiro, da janela para dentro, um saltério para apresentar. Xavecou o que pode, a voz era como flauta pan. Ficou uma possibilidade no ar e uma boa aquisição. O rapaz do fidle saiu à calçada para fumar a cigarrilha, chapéu quebrado na testa. Nem foi preciso apresentações. Logo souberam, os homens, o suficiente um do outro para compreender que não podiam estar juntos. Uma coisa era precisar de companhia, a outra, entregar-se a frivolidades. Antes que se cometesse um equívoco, os rapazes se deram as mãos e Gaspare foi para o cais, abraçado à caixa do saltério, para esperar a barca. 

 


[1] Personagem da ópera de Bizet

[2] Personagem da ópera de Puccini

[3] Compêndio, um exemplar remanescente, de 70 Villancicos espanhóis, por diversos autores, datado de 1556

[4] Conjunto de 427 canções galego portuguesas, de linguagem refinada, da corte de Castela, século 13

[5] Um dos temas de Cantigas de Santa Maria

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