Hospital Casaredo 51

 





Papel de arroz


 

Madame esqueceu-se de tudo às três e quinze da tarde. O refeitório fora higienizado. Só duas refeições, guardadas para os enfermeiros Gaspare e Javier, documentavam que ela estivera na cozinha, no preparo dos bolinhos de bacalhau. 


Ali mesmo, sentada diante da porta, onde se podia enxergar o mar, a senhora contou ao seu caderno que o comandante José Gaetano perdeu as estribeiras no convés. A detonação se deu, supomos, pela nostalgia, por desconhecer o paradeiro do seu Alois, há tempos, uma gastura que, desafortunadamente, o navegador não podia amenizar com canções, tampouco esconder de homens brutos, barbados e fedorentos. A vida não causa os sofrimentos, podemos compreender isso?


José, com uma espécie de grasnado, pôs a todos para correr, por conta de nada. Parecia perigoso deixar que se aproximassem, temia ferir com palavras, àqueles a quem queria bem em especial. Mortalmente envergonhado, José não se contava para ser salvo. Às vezes, precisava que alguém simplesmente ficasse em silêncio a seu lado. Pois, nesta viagem ele tinha a companhia desejada, lá estava o Maden quieto a um canto, canivete e toco de madeira, uma escultura tosca da Nossa Senhora do Amparo a nascer da cavoucação.


Há questão de semanas, José passara a perceber uma ou duas mãos que se lhe pousavam firmes sobre os ombros, irradiavam força térmica. Também lhe corria pela garganta uma bebida efêmera, confortável sensação de ajustamento, sensação que não durava mais que segundos, todas as vezes em que conseguia parar e respirar, após os excessos, arroubos. Tais fenômenos eram traduzidos nas canções, como um gole de água de fonte natural. José Gaetano orava silêncio e retribuiria estes confortos para quem precisasse. Maden foi o primeiro a experimentar e entender as forças ambíguas movidas naquela embarcação, coisas do mar, das almas transparentes. 


O lápis ficou suspenso no ar, braço paralisado, olhar parado. Um surto se avizinhava para Madame. No horizonte, uma nau se aproximava. Gaspare chegou a tempo de a ver. Sem movimentos bruscos, ele pôs as mãos firmes sobre os ombros de Madame e esperou. Segundos depois, o gesto dela afrouxou, o lápis voltou ao bolso da camisola, também o caderno. Veio o pedido, um cálice de vinho do porto, enquanto enfermeiro e senhora acompanhavam a nave com os olhos, seu atracar suave, em consonância com a maré. Antes do vinho, os dois se dirigiram à praia, a ver de perto o que o oceano trouxera.


Nomes de família, pequenos nomes, pequenas histórias 


Wong Bohai sugeriu ao filho expusesse o trabalho que haviam realizado na noite do dan dan mian[1]. As folhas de papel de arroz compuseram singular biombo no Atelier Loto. Wong Lam aproveitou a pequena plateia reunida no espaço, com ela a enfermeira chefe Maria, e contou histórias da China, as diferentes dinastias e suas relações com gente do povo, muitas etnias reunidas no imenso país, nem sempre fraterno. Wong Lam deu vida aos quatro elementos da natureza, aos frutos caídos do pé, às raízes, ao bambu. Exemplificou nomes, que serviam como escudos contra o infortúnio. A cada breve conto, um nome chinês era apontado no biombo, às vezes acompanhado de um termo similar em inglês, espanhol ou português. Uma pergunta foi feita, parecia coerente com a situação que viviam no Casaredo. Que controle os que trabalhavam ali poderiam ter sobre o porvir? Qual o destino de todos os que conviviam naquela casa? 


O jantar dos Wong Chang, de onde nasceram os nomes em mandarim, permitiu várias meditações. Uma delas, a disciplina exercitada pela ópera chinesa – neste momento, convidamos ao amigo leitor revisitar os capítulos anteriores -, a forma de escolher e proteger seus componentes. Outra, as personagens que duravam uma montagem apenas. Os atores, persistentes, permaneciam da companhia durante muitos eons[2]. No Hospital Casaredo, longe uma comparação, havia as gentes reais, tangíveis, nem heróis, ou criminosos, tampouco pessoas improdutivas, exceto os casos graves, que suportavam longos períodos em estado vegetativo. Por que permaneceriam sem identidade? Os Wong Chang sabiam que era primordial sensibilizar as autoridades, manter os apoiadores, colaboradores. Reuniriam documentos de excelência, expressões do atendimento médico, psicológico, psiquiátrico, obras dos profissionais, um legado consistente, ouro para futuras gerações de profissionais da saúde.


Giulionni concluiu a petição a ser apresentada à Desembargadoria. O advogado aproveitou o encontro promovido pelo doutor Wong Lam e entregou a Maria, nomeada representante dos médicos e enfermeiros, as escrituras de seus sobrados, ato de grande efeito moral para a equipe. Algo mudara no íntimo do causídico, ele não o sabia expressar, menos juridicamente. Sentia-se seguro por possuir nome e sobrenome, era relativamente feliz com aquela patente, desde sempre. Sentiu como sua e justa a preocupação do novo amigo Wong Bohai, justas as ações por ele movidas. O assunto aproximara os dois, viam-se agora como irmãos de ideal. Era pertinente lidar com pessoa física naquele estabelecimento. Os nomes para cada paciente humanizariam o serviço prestado diante da sociedade. Eram pessoas idôneas em tratamento, e não párias. De outro prisma, eram profissionais valorosos que, ao fincarem raízes, aumentavam as chances de a casa resistir aos percalços enfrentados por um sanatório em tempos atuais,  às vias de extinção.


Luiz Pedreira e Ava Cusa assumiram a chefia do Pronto Socorro, no dia em que o doutor Wong Lam, juntamente com a doutora Dung Hanh,  compôs o 名字紀[3].

 

A doutora Cusa atuava há alguns anos com obstetrícia e doenças infecciosas, em hospitais públicos do Reino Unido. O doutor Luiz se especializara em doenças do aparelho respiratório. Ambos estiveram voluntários no Dia da Travessia e, como é sabido, engajaram-se à equipe do Casaredo de forma pontual. Por ora, davam conta de todas as urgências, tinham para isso o apoio dos demais médicos da casa e também de colegas convidados. Organizou-se, em pouco tempo, o Ambulatório. Wong Bohai investiu também em um laboratório de análises clínicas afiliado aos primeiros socorros. Alguns instrumentos de ponta e máquinas de alta tecnologia foram incorporados ao setor, transformando-o em promissor serviço diagnóstico para a península. Para dirigir o laboratório, dois homeopatas brasileiros foram contratados, Jean Rama e Jade Pina. O casal tinha cidadania francesa, trabalhava no Saint-Paul de Mausole, cidade de Arles. Foram atraídos ao Casaredo por se tratar de hospital colônia, à beira mar, onde seria agradável trabalhar e envelhecer. Sensibilizaram-se com as histórias da Assistência, noticiadas pelo pasquim de Jeronimo Alcantara. Junto de Luiz e Ava, o casal passou a acompanhar a evolução dos antigos e novos casos, criou soluções eficientes para tratamentos, tanto profiláticos, preventivos, quanto paliativos. Qualificaram ainda mais o cuidado humano, garantindo integridade a todos, da concepção à última fase da existência. 


Vale ainda registrar, os sete monstros enfermeiros, assim conhecidos desde as margens do Douro, foram astros em muitas ações socorristas. Quando atuavam na Assistência, lançaram mão de um rosário de improvisações, viraram-se como puderam, com as ferramentas de que dispunham. As histórias de extração dentária, por exemplo, eram populares.  Mais da metade dos pacientes só ingeria comida líquida por conta disso. Enfermidades bucais foram tratadas com experimentos, era o que se podia oferecer. Gangrenas e outros casos que necessitaram amputação, tiveram conduções parecidas. Dos dentes, quem tratava era o enfermeiro Javier. Ágil com o boticão, o rapaz extirpava as necroses a toque de mágica, o paciente prostrado com o pior rum a que tinham acesso, refém de encantamento contumaz. 


Pero yo te sufrí. Rasgué mis venas

Tigre y paloma, sobre tu cintura

Em duelos de mordiscos y azucenas[4]

 

Talvez o leitor amigo se lembre, já descrevemos este padrão, somente a presença de Javier causava as mais estranhas reações em todos, peculiaridade que favorecia o procedimento violento. Com voz pungente, apaixonada, a repetir aos sussurros os mesmos versos de Lorca, Javier concluía o tratamento e permitia ao paciente um pouco de conforto.


Os enfermeiros Alev e Manoel eram conhecidos como magarefes, pela presteza, limpeza e assepsia que utilizavam nas amputações. Alev surrupiava e contrabandeava material anestésico, de esterilização, itens de sutura, curativos, bebida alcoólica, o que fosse. Ele e Manoel usavam nada menos que uma serra elétrica, doada por um lenhador. Houve um acidente na mata, uma sequoia caiu sobre ele e Alev o pode salvar. Em agradecimento, o lenhador doou o instrumento de trabalho, já que precisaria encontrar outro modo de ganhar a vida. Os enfermeiros cauterizavam as amputações com maçarico. Jamais viram morrer qualquer paciente em sua mesa. Cada enfermeiro tinha sua crença, seu deus protetor, invocavam o que sabiam e conseguiam, de certa maneira, minimizar o sofrimento do paciente e deles mesmos. A enfermeira chefe Maria trabalhava como assistente nessas ocasiões. Fazia as vezes de instrumentador cirúrgico. Sete monstros, portanto, haviam presenciado muitas coisas, dores, lesões e sepultamentos que não cabia narrar. Atualmente, não havia amputados entre os pacientes. Sem os dentes, como já alertamos, quase todos. No dia em que o ortodontista João de Deus fez sua primeira visita ao Casaredo, Javier respirou aliviado. 


Muitos partos foram realizados na Assistência, por Matilde. Muitas perdas neste caso, jamais por inépcia da enfermeira, que fazia o impossível para salvar mãe e cria. As mulheres, mais comumente damas do cais, permaneciam na enfermaria até se recuperarem. Ocultar estes casos exigia aos enfermeiros grande astúcia, para driblar a direção do sanatório. Não havia como cuidar dos bebês no pós parto. Não poucas vezes, recém nascidos eram encontrados ainda com vida nos latões de lixo próximos ao sanatório, por mais que as nutrizes  fossem orientadas, doutrinadas. Maria e Joana se encarregavam de inspecionar as cercanias com regularidade e tratavam de achar algum lar, que desse abrigo a esse início de vida desastroso. 


Havia muitas histórias, muitas. Auto enucleações aconteceram enquanto estes sete monstros estavam a lutar na Assistência: três delas com a retirada de apenas um olho. Cegueira total, ocorreu meses após Maria ser contratada, no dia da chegada de Gaspare, ainda como estagiário. A vizinha de cama de Madame, senhora Três, foi impedida a tempo de concluir o estrago completo. Gaspare soube conter o surto com eficácia e deu ao rosto dela suave harmonia. Ao olha-la, via-se uma piscadela. Dono de emoções inalteráveis durante as reparações, o rapaz deixava para gritar longe o suficiente do prédio, por dez minutos, depois de concluídas as suturas, sempre acudido pela enfermeira Joana, que o acolhia nos braços e cantava cantigas de África, até o moço sossegar. Mama wele, wele seya[5], canto congolês, soava o mais consolador. O enfermeiro ficou conhecido como socorrista dos olhos. Nos intervalos de turno, ele tomava nota das ocorrências em um diário, sem a pretensão de criar ópera. As notícias correram de boca em boca, e foi assim, pelo tal socorrista dos olhos, que o jornalista Jeronimo Alcântara conheceu aquele nicho. Acreditamos que o leitor, com algum esforço, se lembre do homem.


A enfermeira chefe Maria apenas citou números no discurso que fez no atelier, evitou expressar detalhes, tomada por forte emoção. Lembrou-se apenas de que a direção do sanatório proibira a presença de sacerdotes, de qualquer culto religioso nas dependências do prédio, o que corroborou para que os enfermeiros fossem entronizados monstros, uma forma de gerar esperança, funcionava beatificamente. 



[1] Prato da culinária chinesa

[2] Imensurável período de tempo, a eternidade

[3] Míngzì jìniàn – memorial de nomes

 

[4] De Sonetos del amor oscuro, Federico Garcia Lorca

[5] PAROLES EN LARI Mama wélé wélé séya Siri ku ntéla dzié landi Ngati ka mbonguéla muana éhé Eh asi mama téléo TRADUCTION FRANÇAISE Maman est partie aux champs Petite sœur, ne pleure pas On va la rejoindre Et elle te prendra dans ses bras. Acesso Youtube em 9 ago 2024

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